Drummond, Paz e Ferlinghetti

Uma leitora me liga e me diz que quer contar uma coisa bonita: Drummond apareceu numa sessão espírita, dessas em que o copo anda e um espírito se manifesta
Carlos Drummond de Andrade, autor de “A cor de cada um” e “Criança dagora é fogo”
01/06/2015

28.08.1987
Uma leitora me liga e me diz que quer contar uma coisa bonita: Drummond apareceu numa sessão espírita, dessas em que o copo anda e um espírito se manifesta. E mandava recados, dizia um verso ou outro, aconselhava “calma” a Dolores (sua mulher), mandava dizer que estava bem. Dizia também uma palavra misteriosa: “govena”, que as duas moças da sessão não sabiam se era um remédio ou o quê. Referia-se a mim dizendo que a frase de que mais gostou no artigo que escrevi quando de sua morte foi: “Vai Carlos, ser gauche na eternidade!”.

Pedia para eu ligar para sua família. E disseram-me elas que Drummond disse que voltaria, etc.

29.11.1987
Octavio Paz. Estive com ele nesses dias. Simpático. Gentil. Esperava que apreciasse minha tese sobre a poesia & TV, a partir da minha prática no Brasil, quando sobretudo a TV Globo me chamou para produzir vários textos nessa linha, seja para o Jornal Nacional, Jornal da Globo e até o Jornal dos Esportes (durante a Copa de 86). Fernando Daniel, professor de filosofia, acha que ele não quer discutir isso porque se queimou, se expôs muito em tevê no México

Dias depois, Nino me diz no café do Gran Hotel do México que jantara com Paz e que ele havia gostado de minha tese, que a achava das melhores e que tinha mesmo uma paranoia de perseguição (das esquerdas, que viviam sabotando seu trabalho).

De qualquer modo um fato trans-histórico: os belos     poemas pré-colombianos nas paredes do Museu de Antropologia e do Templo Mayor reforçam minha tese sobre a diversidade de suportes para a poesia hoje e ontem. Anotei vários desses poemas antigos.

Anotando coisas: nossos escritores são menos internacionais que esses latino-americanos. Quem, entre nós, poderia escrever esse brilhante artigo de Carlos Fuentes sobre a reunião de Acapulco, onde estive? Para compensar meu complexo de inferioridade, Jose MonteMar (do Peru) me diz que o Brasil tem uns 20 autores internacionais nas ciências sociais.

Três propostas minhas foram aprovadas no colóquio:

1) Que convidem mulheres para o próximo colóquio, que sejam menos machistas;

2) Que haja esse colóquio latino-americano todo ano;

3) Que o português seja estudado nos países latino-americanos.

Essas duas últimas propostas entraram no documento final de oito presidentes latino-americanos.

26.04.1994
De manhã fomos — eu, João Almino e Emanuel Brasil — visitar o Ferlinghetti na sua livraria: Citi Lights. Embora seus 75 anos, está forte e rijo, com um brinco numa das orelhas. Recebeu-nos às 9h30 na abertura da livraria. Falamos de várias coisas. Fiz uma cena em minha filmadora. Refere-se à Poesia Sempre, que está em sua mesa como uma revista colombiana. Não a havia lido, mas estava impressionado pela apresentação gráfica. Lê um poema meu em francês que está a revista: L’homme cannibale, ri, acha-o parecido com Prevert. Autografa para mim e João Almino o seu romance, que surpreendentemente é sobre Fernando Pessoa como um anarquista em Paris nos anos 20. Dou-lhe O lado esquerdo do meu peito, cujo título João Almino traduz para ele.

Ele me conta que deram o seu nome a uma rua de San Francisco e fizeram uma festa na inauguração com sua presença.

Conversamos sobre o texto que recebeu do subcomandante Marcos, o Zapatista de Chiapas, México. Promete uma cópia. Xerox. Vai à parte de cima da livraria fazer a cópia mas desce com a cópia de um poema seu em prosa. Só no caminho do café, fora da livraria, resolve fazer a cópia do documento do subcomandante Marcos. Explico-lhe que aguardaria que ele o divulgasse primeiro.

Conversamos sobre Yevtushenko (que conheci no Rio) a propósito de um pôster do poeta no seu escritório. Referiu-se a ele dizendo que participaram de uma sessão de poesia na Austrália. Falamos de Mark Strand, mas ele não se mostrou interessado. Não é de sua gang. Insiste que deveriam dar o Nobel a Ginsberg, diz que escreveu carta sobre isso para a Academia Sueca, mas não responderam .

Mostrou-me a carta-convite para ir a Belo Horizonte, ao festival organizado por José Maria Cançado, celebrando os 100 anos da cidade. Aconselho-o a ir e aproveito para convidá-lo para passar pela Biblioteca Nacional e fazer uma leitura de poemas. Aconselho-o aceitar também o convite par ir a Medellín.

O texto do subcomandante Marcos que Ferlinghetti me passou é juvenil, messiânico, fala de “adeus” de “sacrifício”, um louvor ao “dever”. Fala que a luta tem dois lados, e que o escuro é que possibilita o claro.

Receio que seja um mito que a mídia criou.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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