Tesão pela literatura

Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada trata, de maneira explícita e prazerosa, da liberdade sexual
04/04/2015

A primeira frase do livro é: “A mulher que eu me tornei sabe que o orgasmo é dela, e por isso o oferece facilmente”. A autora também oferece logo ao abrir a porta de sua obra algumas chaves. Na história escrita com poemas, contos, cartas e aforismos que juntos formam uma narrativa, há uma transformação da personagem principal. E isso é como um romance — ela habita uma situação e se livra dela para viver como mais desejava. Esse orgasmo que é dela, eis o que mais desejava. Ainda que fique no ar uma dúvida se a mulher consegue realizar o que conta ou se a plena liberdade sexual não passa de uma fantasia virtual.

Mas essa narrativa não é nada linear. O primeiro dos três capítulos é quando o leitor não encontra ainda nem o nome da personagem, apenas intui que seja a mesma mulher em todas as descrições de intensas trepadas. Essas descrições são muito explícitas e ao mesmo tempo, pela construção das frases, geralmente curtas, ritmadas, usando repetições semânticas, são altamente poéticas — pelo uso da palavra. A sonoridade e o ritmo são tão marcantes na primeira parte do livro quanto a libido que escorre das páginas. Esse primeiro capítulo chama-se A conquista de si.

O segundo capítulo é O percurso. A personagem, agora com roupa, enfim se revela. Fala da mãe opressora, de um pai violento, recebe cartas endereçadas a Anna, assinadas por um Paulo que primeiro tem amor, depois assina só com o nome, por fim termina a mensagem derradeira com um “com carinho” que é uma espécie de rendição. Ele é o ex-marido, tentando uma reconciliação. Anna o deixou. Anna não tinha orgasmo com ele. Propôs um casamento aberto, que Paulo não aceitou. E o leitor já sabe que Anna pode ter encontrado o que buscava. Pode…

O último texto do primeiro capítulo oferece um diálogo (mais uma variedade narrativa oferecida pela autora). Ele e Ela — também não há nomes aqui. Há uma distância, apesar da intimidade da conversa. Uma distância física. Mas o teor é quente, escrito em frases bem curtas, como em mensagens telefônicas ou conversas escritas por computador. Ela começa perguntando o que Ele achou dos contos. E termina com cada um deles indo finalizar sozinho o tesão construído na conversa. Quer dizer que os textos anteriores podem ser esses contos, vividos ou não pela personagem. Quer dizer que pode ter sido tudo fantasia. Mas no mínimo são fantasias que ela conquistou a liberdade de viver. No mínimo.

O terceiro capítulo são aforismos. Ao mesmo tempo pode-se encarar como fragmentos de impressões e vivências da personagem principal: são opiniões de um ou outro, dessas certezas sociológicas nada definitivas que as pessoas costumam ter e, pior, falar. Como “A jornalista feminista disse que homem é tudo palhaço”, ou “A historiadora disse que ser mãe é o sonho de toda mulher”. A isso seguem-se relatos curtos de homens com quem flertou e deram alguma desculpa para não seguir uma relação.

O livro termina com uma sequência reveladora de textos, Antes, Durante e Depois. É uma roda-viva dos desejos, das promessas, da dificuldade cruel da sociedade realmente conseguir aceitar comportamentos diferentes dos enraizados dogmas. Especificamente a liberdade sexual, que é um tema central no livro, tratado normalmente como se fosse apenas uma ideia maluca, uma fase logo passa.

Pelo texto de Anna P., puramente literário, não está colocada nenhuma defesa da liberdade sexual, do casamento aberto. As questões estão bem postas, mas não é um ensaio. Não é possível afirmar que a autora acredite realmente no que busca a personagem que criou. O que está claro é que se trata de uma busca, com muitos tropeços, muitas rejeições, um sofrimento implícito. Aliás, apesar de completamente desnuda no ato sexual, a personagem, ela mesma, parece percorrer o livro envolta em véus. Ela se coloca diretamente no segundo capítulo falando da mãe e do pai, com um pouco de ironia. Depois, está tudo sugerido nas cartas de Paulo, o ex-marido. Enfim, Anna não reclama abertamente da vida.

Poesia e psicologia
Freud caminha a passos largos nos textos dessa obra. Mas há de se ter bom conhecimento de psicologia para se aprofundar no assunto. Não é o caso agora, afinal o jornal é de literatura. A poesia está mais evidente. O trabalho com a língua, seria mais assertivo dizer, caso não fosse também uma piadinha tão óbvia quando o assunto é sexo.

A repetição de palavras ou construções de frases é dos recursos mais usados para tornar as descrições de atos sexuais um texto literário. “Saudade da atmosfera entorpecente entre conhaques e cigarros, saudade da boca seca e do coração disparado, saudade do beijo impetuoso e das pernas então querendo se abrir sem comando, saudade da sua mão admirada na minha barriga e do cheiro do seu pescoço…” (trecho de Saudade). Em Só de olhar nos olhos dele, novamente funcionam as repetições: “Primeiro eu gozei me masturbando para ele olhar. Depois eu gozei com ele sugando e lambendo o meu clitóris. Depois eu gozei me masturbando de bruços enquanto ele enfiava o dedo no meu cu”.

Como se percebe, as cenas são puramente descritivas e é no encadeamento que se faz a literatura, carregada, no todo, com questões humanas mais profundas. Pode-se pensar que com essa mesma habilidade a autora teria escrito um atraente livro sobre cozinha ou mecânica de carros. Como o tema é o ato sexual, aos homens de menor controle sobre as emoções recomenda-se que evite a leitura em lugares públicos.

Drummond teve seus poemas eróticos publicados depois de sua morte — o que ele próprio achava deles? Mas a referência que Anna P. faz ao poeta está em dois textos do primeiro capítulo. São os bem-humorados ABC I, ABC II e ABC anal. Quadrilha seria o poema de CDA homenageado. “André gostava de dar pancadinhas no meu clitóris com a parte de trás dos dedos; Bruno gostava de vibrar a pontinha dele com a ponta da língua; Caio sugava lento, comprido e fundo… ” (trecho de ABC I). No primeiro da série, são as descrições do que os homens fazem com ela, em ordem alfabética. Em ABC II é da mesma forma o que os homens gostam que ela faça com eles. No terceiro, o conteúdo está entregue no título.

Cresce a suspeita da presença de Freud no texto Quem com falo fere, com falo será ferido. Aqui ela literalmente vira o jogo, comanda o sexo, descreve a cena do ato com a mulher agindo e dizendo coisas de maneira comumente masculina. “Ele foi relaxando, se deixando foder, e eu fui ficando mais forte, mais viril, e podia sentir meu clitóris crescer a ponto de explorar a entrada da bunda dele”. A questão clássica do domínio masculino no sexo, subjugando a mulher, é completamente invertida.

Série
O livro Tudo o que pensei mas não falei faz parte de uma série da editora Hedra. Houve um primeiro lançamento com três obras e outras três estão no prelo. São autores clássicos e outros contemporâneos (caso de Anna P.), como Oscar Wilde, Sacher-Masoch, Robert Stoller (ensaios) e o poeta Glauco Mattoso.

Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada
Anna P.
Hedra
161 págs.
Anna P.
Alguém sabe quem é Anna P.? O pseudônimo, em buscas na internet, remete a uma marca internacional de cosméticos e a uma mulher na Inglaterra que fabrica adereços de moda. No livro só está dito que é uma escritora brasileira contemporânea e que esta é sua primeira obra publicada. Homem ou mulher, segundo o editor da Hedra, Luiz Dolhnikoff, Anna P. vive na Vila Madalena, em São Paulo.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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