Quando se discute a respeito das razões que impediram ou ainda impedem a literatura brasileira de ser reconhecida internacionalmente como uma das grandes, como uma das maiores do mundo moderno, o equívoco me parece ser a perspectiva da questão: seria necessário perguntar primeiro por que os brasileiros conhecem mal a sua própria literatura.
Mesmo entre os especialistas, poucos leram a literatura brasileira. Não me refiro, é óbvio, à totalidade dela, mas ao seu cânone básico, que não tem menos de mil livros excelentes, que não tem menos de quinhentas obras-primas.
Mesmo as nossas grandes grifes, nossos escritores de exportação (no sentido acadêmico, não comercial), como Clarice, Rosa e Machado, são geralmente lidos como manifestações brasileiras de linhagens literárias fundadas em outras línguas. É o velho problema da subserviência intelectual, do complexo de vira-lata.
Mas — pergunto eu — que literatura pode se orgulhar de ter produzido, no século 20, um trágico como Nelson Rodrigues, um épico como Jorge de Lima? Que literatura elevou a crônica a nível tão alto de realização estética? Ou — para entrar logo no assunto da coluna — como se explica que um romance como Dunas, de Breno Accioly, não tenha tido nem fortuna crítica nem carreira editorial à altura de sua importância?
É verdade que Breno seja mais conhecido, e reconhecido, como contista. Em suas quatro coletâneas (João Urso, Cogumelos, Maria Pudim e Os cata-ventos) não se consegue achar um conto ruim, ou apenas razoável. Os melhores contos de Breno Accioly talvez sejam os contos completos de Breno Accioly. Assim, o romancista foi esquecido.
Dunas, seu único romance, trata do seu tema fundamental e recorrente: a loucura e suas fronteiras indelimitáveis. A história começa em Santana do Ipanema, interior de Alagoas, no maior casarão da cidade, em frente ao rio. Sigismundo, o narrador, é um homem moralmente destruído, que vive numa espécie de auto-exílio, indiferente à mulher, Isabel, e já sem forças para enfrentar os advindos da doença da filha, Bernadete, que é pirômana. Fora do núcleo familiar, mantém relações apenas com o promotor da cidade, seu adversário no xadrez, que sempre vence.
Sigismundo odeia e despreza o promotor, que todavia parece ter por ele uma amizade sincera. As sucessivas e retumbantes derrotas que o narrador sofre no tabuleiro de xadrez são uma síntese e uma metáfora da sua própria vida, de uma vida que ele não soube jogar.
Porque a trajetória dessa personagem é um acúmulo sucessivo de derrotas: nasce rico, mas vai vendendo suas propriedades a preços vis; deseja ser escritor mas só consegue um emprego de cavalariço; casa-se com uma mulher que nunca amou, apenas para ter uma empregada; ao passo que humilha, agride e expulsa de casa sua única paixão verdadeira (com quem teve Bernadete); também despreza, humilha e abandona seus dois melhores amigos, que o socorreram nos piores momentos e que lhe deixaram todos os bens.
Mas esse é apenas um encadeamento superficial dos fatos narrados no romance: a grandeza do livro está no tratamento do foco narrativo, centrado em Sigismundo. São pequeníssimas ambiguidades, são sutilíssimas omissões que nos fazem perceber, ou intuir, as semelhanças entre a loucura explícita da pirômana Bernadete e o comportamento do pai, no plano moral.
Dunas saiu em 1955 por uma editora que desconheço, pois nunca tive esse volume em mãos. É de 2000 o que acredito seja a segunda edição do romance, que integra as Obras reunidas, publicadas pela Escrituras. São exemplares raros, que justificam preços acima de R$ 70,00.