Política e desolação

Ando abatido com o Governo Collor. Eu e muita gente. O governo parecia ir tão bem, de repente, o estapafúrdio romance Zélia-Bernardo Cabral e tudo fica abalado
01/03/2015

19.10.1990
Ando abatido com o Governo Collor. Eu e muita gente. O governo parecia ir tão bem, de repente, o estapafúrdio romance Zélia-Bernardo Cabral e tudo fica abalado. Chacota na imprensa nacional e internacional. Bernardo parece um bobo triste, apareceu de improviso, depois de demitido, na sessão da CPI onde Zélia falava, contrangendo a todos. E agora a demissão do Motta Veiga (da Petrobrás) e choque com o governo — Zélia e PC. Me disse Carlos que estava com ele num almoço de ex-presidentes da Petrobrás e Motta Veiga confessou que não aguentava mais. Carlos diz que PC quis $ da Petrobrás, processo de corrupção. Motta Veiga resistiu.

E Collor em tudo isto? Enigma.

E agora dizem (Já apareceu na imprensa) que Zélia está grávida.

Estou preocupadíssimo. E começo a ficar desapontadíssimo.

Por essas e por outras que o papo de ser secretário de Cultura no lugar do Ipojuca fica para mim cada vez mais absurdo.

10.02.1991
Os jornais estão narrando a toda hora os desmandos da mulher do presidente Collor: prepotência e interferência fisiológica na política, dentro e fora de Alagoas. Fico pensando num bom ensaio: Entre o Estado e a família — analisando a questão do pessoal/impessoal em política, aprofundando o que DaMatta colocou hoje no JB, quando analisou a escandalosa foto em que Moreira Franco, governador, recebe no Palácio Laranjeiras o comando do jogo do bicho/escolas de samba, dando assim, um aval à marginalidade. Eu deveria me referir “à família Vargas”, “família Sarney”, família dos “militares” durante a ditadura — mistura da coisa pública e privada.

Tenho a impressão de que Collor vive uma ambiguidade: a sociedade arcaica (sua família) e a sociedade moderna (sua intuição). De um lado a corrupção política em Alagoas e o grupo dos “sete amigos”, e o PC Farias, de outro, a equipe econômica e o desejo dele de querer fazer uma política de primeiro mundo.

Pensei até em mandar uma carta, através do embaixador Coimbra, analisando essa ambiguidade (que é da estrutura brasileira) e a necessidade de reforçar o outro lado sadio, caso contrário, cairá nas mãos dos retrógrados.

17.02.1991
Hoje estive muito desanimado. Ontem, às 4 da tarde, sábado, estava aqui vendo um filme antigo com Errol Flynn na TV, saboreando um vinho tinto francês e um espaguete com/da Marina, quando me telefonam da FBN [Fundação Biblioteca Nacional]. Um funcionário, desesperado, dizendo que o temporal havia uma vez mais molhado livros dos dois “armazéns” e que ele e várias outros haviam tentado salvar vários documentos, mas que tiveram que ir embora, pois acabou o expediente às 15 horas e deixavam a responsabilidade comigo.

Fui, aflito, pensando já na calamidade, corpo de bombeiros, TV, etc. Cheguei, vistoriei os armazéns com um dos vigilantes, separei mais livros molhados enquanto algumas goteiras escorriam por três andares, passando, inclusive, pela fiação, com grande risco de incêndio.

Registrei tudo no livro de ocorrências. E segunda-feira vou insistir nas providências.

É duro. O Ministério da Cultura é aquela coisa, o Patrimônio não tem recursos. Acresce que não tenho liberdade orçamentária. Estou trabalhando sem conhecer o orçamento que virá para a Fundação. Por outro lado, o inventariante, essa figura que o governo Collor criou, atrapalha e o governo, para cúmulo do azar, sustou as verbas de custeio em 90%.

Uma calamidade.

27.07.1991
Desde 13 de maio, até hoje, o US$ 1 milhão prometidos pelo presidente não chegou. Todo dia Rouanet me diz que fala com o Marcílio Marques Moreira (ministro da Fazenda). Agora o terceiro escalão confessou-lhe que o presidente não pode alocar verbas não previstas, a não ser na sua “emergência”.

— Que solidão a do administrador!

Na coluna do Zózimo no JB: “Do presidente da FBN, ARS: —Descobri que na administração pública a roda é quadrada e a gente tem que, mesmo assim, fazer a carruagem andar, como se a roda fosse redonda”.

Na FBN a quantidade de coisas que ordeno não acontecem. Não há follow up. Bem dizia eu em Que país é este?:

“Este é o país do descontínuo, onde nada congemina”.

— Por outro lado, coisas bem ilustrativas: outro dia, por causa de uma série de medidas que tomei, acenderam dezenas de lâmpadas, que estavam queimadas, há anos nos salões de leitura, e os funcionários, surpresos, aplaudiram o fato.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho