A palavra como imagem de Chaplin

Charles Chaplin está na moda. Foi com ele que aprendemos a destruir a dor, a tortura e o desencanto com o riso
Charles Spencer Chaplin foi um ator, diretor, compositor, roteirista, produtor e editor britânico
01/03/2015

Charles Chaplin está na moda. Foi com ele que aprendemos a destruir a dor, a tortura e o desencanto com o riso. E foi justamente por essa razão — pelo combate da dor com o riso — que os radicalíssimos muçulmanos atacaram e mataram os cartunistas da revista Chalie Hebdo. Os estúpidos, os grosseiros e os monstros não suportam uma boa gargalhada, um risinho simples ou um leve deboche.

O combate à dor com o riso nasce na cena de O grande ditador, quando Carlitos, militarizado, brinca com a bunda numa bola gigante, lembrando a estupidez de Hitler no massacre dos judeus. Naquele instante, o todo-poderoso alemão é ridicularizado, escarnecido e humilhado, sem deixar brecha para respostas.

A cena antológica foi muito, muitíssimo lembrada no instante em que os bárbaros sujaram o céu de Paris e assassinaram aqueles jornalistas que deram leveza ao grande drama no começo do terceiro milênio: a ação estúpida do fundamentalismo religioso. Um momento histórico de grande agonia, de grande angústia, de grande desespero.

É também com uma cena, uma breve e bela cena, que Chaplin marca sua presença na literatura universal, escrita muito antes do filme Luzes da ribalta, e que mostra a sua capacidade de escrever, tanto quanto de fazer cinema. É possível que ele não tenha acreditado tanto na palavra quanto na imagem; embora a cena seja extremamente imagética, e mostre mais do que diz. Ou seja, produz no leitor o efeito que a imagem causa no espectador.

Nessa cena notável, Tereza Ambrose ou Tatty está tentando o suicídio, mas o narrador nada diz, mostra apenas a cena e os movimentos dela. O leitor vai compreendendo e se deixando seduzir pela imagem correta, tanto quanto acontece no cinema. É assim: “Na penumbra do pôr do sol, conforme a luz dos postes de Londres se tornava mais atrevida contra o céu amarelo-alaranjado, Tereza Ambrose, moça de 19 anos, esvaía-se de vida, afundando no crepúsculo de um quarto pequeno e miserável nas ruelas de Soho”. Na incrível habilidade técnica do autor, observe-se que ele substitui a palavra “morria” pela expressão “esvaía-se de vida”, no que pode ser considerada uma fuga lírica, mas na verdade estabelece a leveza da cena. Aí, aquele rigor técnico, ou a exatidão de que tanto se reclama, faz com que o leitor entre na cena pela compreensão, e não pela exposição. Acho apenas desnecessária a idade da personagem, que em nada enriquece o texto, mas empobrece-o pelo excesso de informações, além de desviar a atenção da cena. Em seguida: “Uma janela iluminou o aposento e destacou seus traços pálidos sobre o travesseiro: ela estava deitada de costas, um pouco para fora da beirada de uma velha cama de ferro. Uma cascata de cabelos castanhos descia pelo travesseiro, ela estava emoldurando o rosto angelical, agora calmo, exceto pela boca, que tremia de vez em quando”. Observe que o único inconveniente aí é o uso do pronome “seus” que, muito ambíguo, confunde o corpo de Tereza com “janela”.

“Símbolos de clássicos de tragédia se espalhavam pelo quarto: um frasco vazio de comprimidos para dormir no chão, o sibilar de um jato de gás. Pode-se compreender plenamente que a jovem tentara o suicídio, através da ingestão de comprimidos ou pelo uso do gás.” Nada fica dito com clareza.

É claro que se pode dizer que a literatura contemporânea é objetiva, mas cabe ao autor realizar essa objetividade da maneira que lhe parecer correta, desde que seduza o leitor. São questões que estarão sempre em debate, embora alguns críticos não admitam sequer o debate.

Mesmo assim, é preciso destacar que essa novela ofereceu a Chaplin os elementos para a realização de Luzes da ribalta, com personagens e história muito parecidos.

Na segunda parte da Grande cena que abre a novela, Chaplin abandona a descrição do suicídio — sem falar em suicídio ou em morte — para aprofundar a personagem, expondo o seu passado.

Tinha, na história, sido uma vida estranha, repleta de frustrações, cujas circunstâncias sórdidas foram expostas a uma criança sensível, ainda em idade tenra e vulnerável. Ela era esquisita e amuada, características em parte herdadas, mas acentuadas por acontecimentos trágicos e um passado familiar incomum.

Aqui há uma mudança radical na técnica narrativa: na primeira parte, o autor trabalha o sentimento dos acontecimentos, envolve e seduz o leitor; na segunda parte, leva o leitor para o fundo do poço emocional.

Em seguida, apresenta outro personagem familiar, que será responsável, por herança, do drama de Terry, e que altera sobretudo a tônica narrativa:

Seu pai, Charles Ambrose, era tuberculoso, quarto filho de um nobre inglês. Aos 16 anos, Charles fugiu de Eron e cruzou o mar, voltando depois de muitos anos de uma vida precária para se casar com a mãe de Terry, uma humilde criada na casa de uma venerável família que nunca o perdoou.

Charles Ambrose demonstrava certo talento para a poesia, mas seu senso de responsabilidade era digno de pena. Em sua inocência, acreditava que, ao contribuir com versos e ensaios para uma determinada revista, poderia sustentar uma família. Porém, tal noção foi logo estilhaçada e ele foi forçado a fazer trabalhos paralelos.

Essa técnica chama-se apresentação do personagem e do tema, deixando o leitor imerso na história.

Não resta dúvida de que, na sua primeira novela, Chaplin já mostra o domínio dessas habilidades.

Luzes da ribalta
Charles Chaplin
Trad.: Henrique de Breia e Szolnoky
Companhia das Letras
219 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho