Quando o assunto é poesia, as coisas nunca são o que parecem. Geralmente costumam ser bem piores. O poeta, entenda-se a maioria, considera-se um ser iluminado e isso lhes dá o salvo conduto para escrever e dizer besteiras só porque as distribui em rimas. Raríssimas exceções, mas raríssimas mesmo, valem o tempo destinado à sua leitura. Repare que me refiro ao universo brasileiro. Mariana Ianelli, nossa poeta maior, Luís Augusto Cassas, Gullar, Tanussi Cardoso, Celso de Alencar. E ficamos por aqui.
Carlos Nejar tem se dedicado mais à prosa. E Carpinejar, dos brilhantes Biografia de uma árvore e Terceira sede, atualmente pode ser lido na forma de cronista/humorista.
Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, é uma luz na poesia brasileira. É isso. E estamos conversados. O mais é pura desolação.
Mas digamos que você, assim como este aprendiz, goste de ler poesia e não tenha acesso à poesia estrangeira, por não ler na língua de origem, por não ter edição em português, o que fazer? Afaste-se do gênero. Volte quando o poeta merecer sua atenção.
Exemplos: as edições bilíngues de Um lance de dados, de Stéphane Mallarmé, e O homem e os animais, poemas de Umberto Saba.
A maioria dos poetas gasta tempo, tinta e papel em pródigas repetições, mestres das aliterações, são concorrentes à altura dos dormonid, lexotan e seus congêneres.
O homem e os animais chega ao leitor via Editora UFSC. Entenda-se, editora preocupada com a qualidade em primeiro lugar. Antes que você me acuse de ter dito que só editoras com essa característica estão preocupadas com a qualidade, releia e perceberá que eu não escrevi isso. Mas se não escrevi foi por pouco. É quase isso.
Voltemos a Umberto Saba.
O leitor encontrará poemas aparentemente despretensiosos. Aparentemente. O poeta não faz uso de artifícios melodramáticos, tampouco perceberá poemas onde o distanciamento, tão cantado e decantado, produz peças insossas. Umberto Saba trata a tudo e a todos com o máximo respeito e importância conferida aos seres e coisas que compõem o dia a dia dos humanos dotados de sensibilidade capaz de valorizar o imaterial e de entender os sentimentos de um pintarroxo e um melro.
Sempre que abordadas, as questões acerca do tratamento que dispensamos aos animais provocam reações belicosas. Seja de parte dos defensores dos animais, e pergunto como agir de forma diferente ao enfrentar um perverso, um cretino capaz de tirar o couro de um gato vivo? Outra reação, ainda mais comum, tem origem no medíocre que vislumbra o absurdo e cria o confronto ser humano x animal: “Onde se viu gastar com animais enquanto crianças morrem de fome?”. Esses gênios só atuam no confronto pois se fossem tão preocupados com o ser vivo, independentemente de humano ou não, tentariam ajudar a todos. Mas é isso, caro leitor, basta falar em tratamento digno para animais que vozes roucas e patéticas se fazem ouvir. Ao mesmo tempo que alguns lutam pela dignidade animal, paradoxalmente, os números da produção animal para consumo humano aumenta significativamente a cada ano, devido à crescente demanda dos países emergentes.
Sobre esse tema, sugiro a leitura de Plaidoyer pour les animaux, de Matthieu Ricard, doutor em genética celular e monge budista. Não sei de edição brasileira, mas encomende que me comprometo a traduzir.
Voltamos ao assunto interrompido. Poemas de Umberto Saba.
Caso tenha pensado em La Fontaine, esqueça. Mas esquecer não implica desvalorizar o mestre das fábulas, implica ler Saba também por esse viés. Embora utilizem formas de expressão bem diferentes, e por isso a sugestão de não compará-los, vale a pena ler os poemas dedicados aos animais como “quase fábulas”.
Reflexo do homem
Não pense que essa coletânea de poemas de Umberto Saba apresenta sempre o animal como centro das atenções, o protagonista. Vai muito além, arrisco dizer que na maioria dos poemas o animal é o reflexo do homem, ou quem sabe o homem reflita o animal no espelho de suas ações diárias. Sem demérito a qualquer dos protagonistas.
Olho, mulher, para teu cão que adorado
te adora. E eu… se penso em minha vida!
Agi variadamente, se mal ou bem
não saberia; sabe-o Deus, ou mais ninguém,
quem sabe. Nunca a alguém pertenci, nem nunca
a alguma coisa. Fui sempre
(“culpa tua” tu me respondes) um pobre cão de rua.
Os poemas de Saba são de uma delicadeza incomum. Importante ressaltar que tal delicadeza não implica banalidades. A edição bilingue enseja o contato/cotejo com a língua original. O homem e os animais é obra a ser saudada, a ser estudada, entre as questões a pesquisar: como a simplicidade pode ser tão profunda?
Vale destacar a sensibilidade das organizadoras desta coletânea de Umberto Saba, não se percebe uma nota destoante, o agrupamento dos poemas confere-lhes unidade e permite ao leitor a familiaridade com aquele ponto de vista do eu lírico. Não se trata de uma obra solar, longe disso, percebem-se momentos crepusculares, aos quais todos estamos sujeitos, mas despidos de ranços apocalípticos. O poeta faz o mea culpa por nós, caro leitor. Acredite. A partir de suas confissões, as mais pessoais, ele confessa por nós.
O poeta testemunha os acontecimentos, no mais das vezes sórdidos, que fazem o nosso mundo, esse “mesmo mundo”, e dele extrai sensações e conclusões onde percebe-se a ausência dos tão comuns laivos de pieguice que costumam invadir a poesia de um modo geral.
Saba coloca o homem, mais precisamente a condição humana, no centro de sua poética e curiosamente se afasta do senso comum que enfadonhamente descreve o ser humano sem a perspectiva do futuro. O poeta não indica caminhos, embora não esconda a realidade, muito pelo contrário, parte dela para a luta imprescindível de viver com poesia. A poesia como arma.
Além dos animais que “animam” vários poemas da coletânea, o leitor deve prestar redobrada atenção àqueles onde Saba “anima” a cidade. Nada a dever ao flâneur de Baudelaire, embora o eu lírico de Saba, diferente daquele de Baudelaire, deixa nítido seu compromisso, sua expectativa, para com sua Trieste.
Minha cidade que em toda parte é viva
tem seu cantinho afeito a mim, à minha vida
pensativa e esquiva.
Caro leitor, está valendo a promessa de traduzir o livro de Matthieu Ricard. Enquanto isso, leia e releia O homem e os animais. Fiz isso, faço isso, olho nos olhos de meus cães e gatos, olho nos olhos do garoto que vende balas no semáforo, minha culpa só aumenta. Para a maioria vale o que disse Matthieu: “Uma das vantagens de ser uma criatura racional é encontrar uma justificativa para tudo o que quero fazer”.
A poesia — mesmo a de Mariana, Cassas, Alencar, Adriana, Saba — não pode fazer nada por nós.