“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: ‘Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos’. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.” A reação de indiferença de Meursault à morte de sua mãe faz com que não nos espantemos após o personagem assassinar um árabe a tiros em uma praia. Apesar da desculpa de ter agido sob delírio provocado pelo calor, isso não quer dizer que sentia algum remorso pelo que fez — Meursault não é um homem de sentimentos, definitivamente. É o gatilho da história do clássico O estrangeiro, lançado em 1942 e escrito pelo franco-argelino Albert Camus, que recebeu o Nobel de Literatura de 1957 “por sua importante produção literária, que, com seriedade lúcida ilumina os problemas da consciência humana em nossos tempos”. Camus sabia que, para algumas pessoas, qualquer vida vale muito pouco ou absolutamente nada.
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No dia 7 de janeiro, dois homens com rostos cobertos e fortemente armados entraram na sede do jornal Charlie Hebdo, em Paris, e promoveram uma carnificina. Contando com os polícias que mataram na fuga, ao todo, em um primeiro momento, tivemos 12 mortos e 11 feridos. O objetivo era, supostamente, vingar o profeta Maomé, alvo de charges que o satirizavam feitas por colaboradores do jornal. Dias depois, os dois criminosos são cercados por polícias em uma empresa e, em seguida, mortos — dizem que houve troca de tiros. Ao mesmo tempo, outros policiais acabavam com um sequestro que um parceiro da dupla executava em um mercado judaico. Na ação, ao todos cinco pessoas são mortas. Duas semanas depois, o assunto continua constantemente na mídia.
Mais ou menos na mesma época, na Nigéria, cerca de duas mil pessoas morreram após ataques do Boko Haram, grupo armado que deseja implementar a “lei do Islã” no país. Por aí, difícil encontrar o nome de uma vítima sequer. As milhares de mortes não encontraram grande repercussão. Vidas de irrisória importância.
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Em 1947, o escritor e químico italiano Primo Levi lançou É isto um homem?, provavelmente o melhor livro que há sobre o sofrimento de judeus ao longo da Segunda Guerra Mundial. Levi foi enviado para Auschwitz em 1944 e, quase milagrosamente, deixou o campo de concentração no ano seguinte, quando pôde retornar ao seu país natal. Foi um dos raríssimos sobreviventes do mais famoso centro de extermínio do exército de Adolf Hitler. Na obra, relata sua história na filial do inferno.
Em 2013, a jornalista mineira Daniela Arbex lançou Holocausto brasileiro, sobre uma outra filial do inferno, em Barbacena, onde milhares de brasileiros foram internados por, segundo alguns, apresentarem desvios mentais. Por lá, chegavam a comer pomba crua que caçavam no pátio e a beber a própria urina para que não morressem de sede — ainda assim, podiam ter sua morte induzida para que, em seguida, seus ossos fossem comercializados. Mais de 60 mil pessoas perderam a vida no lugar.
Muita gente não importa em sujar suas mãos, desde que com a anuência de algo superior — nos dois casos, o estado —, para aniquilar a vida de milhares ou milhões de pessoas.
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Duas coisas me chamaram atenção para que eu sugerisse uma resenha de Os bons suicidas, do espanhol Toni Hill, ao editor deste Rascunho: o título — um tanto instigante, ao meu ver — e os cachorros de ponta cabeça na capa — sim, sei que não se deve julgar livro algum pela capa, mas ter algum interesse por ele por causa de sua cara pode, né!? A sinopse não me desagradara: a investigação de três supostos suicídios de pessoas de uma mesma empresa após um final de semana de treinamentos. Não conhecia o autor e sua obra, mas logo descobri que o livro é o segundo volume de uma série protagonizada pelo inspetor de polícia Héctor Salgado, que estreara, bem como seu criador, em O verão das bonecas mortas.
Pois bem. Peguei, li, anotei e… creio que Hill deveria ter seguido um caminho diferente em Os bons suicidas, por isso todos os exemplos acima. Deixarei detalhes de lado para não acabar com a graça de quem ainda for ler o livro, mas seria muito mais interessante se o autor optasse por explicitar crime praticado para adentrar à mente de seus personagens, daqueles que concretizaram o ato em questão, mostrando suas reações, como passaram a viver com o peso do que fizeram, como justificam para si o que fizeram (sim, a premissa de Crime e castigo). Disso, surgiria a oportunidade de termos algo que mostre como vidas humanas normalmente possuem valores diferentes, que varia conforme algumas questões — onde a pessoa nasceu, cor de pele, renda… enfim, variáveis que todos sabem quais são, seja por conta da teoria, seja pela prática.
Mas não, o que Hill entrega é uma narrativa policial bastante convencional, com uma série de crimes ou suicídios sendo investigados por um detetive — e seus comparsas nem sempre tão comparsas assim — que segue o estilo muito antes já visto em livros do tipo. Acaba por entregar ao leitor uma obra razoável, que tem seus bons momentos, cuja leitura flui, mas que se encerra assim que a última linha da última página é lida. Para não ser radical e apostar no “nada”, creio que pouca coisa deva permanecer na cabeça de quem ler Os bons suicidas, ainda mais passada uma semana da conclusão da leitura.