Em 1902, o engenheiro Pereira Passos assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro, nomeado pelo então presidente da República Rodrigues Alves. Encontrou uma cidade degradada, ainda bem parecida com os cenários descritos por Luís Edmundo no clássico O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Uma urbe insalubre recheada de cortiços, celeiro perfeito para a febre amarela, a varíola, o cólera. Era conhecida como a cidade da morte.
Instigado pelas teorias sanitárias do médico Oswaldo Cruz, Pereira Passos abriu uma intensa batalha para sanear o Rio de Janeiro. Derrubou cortiços, alargou ruas, criou novas avenidas, implantou parques urbanos, melhorou os sistemas de abastecimento de luz e água. O Rio civiliza-se, estampavam os jornais. E neste ritmo estava selado o destino do Morro do Castelo, uma área de favela bem em frente à avenida Central. Seria demolido sob a alegação de que impedia os ventos marinhos de melhorar o microclima da cidade.
As condicionantes sociais desta demolição são a base do enredo do novo romance de Marco Carvalho, Uma ladeira para lugar nenhum. No entanto, talvez apenas a tragédia social, histórica e ecológica da demolição do morro, que se deu entre os anos de 1920 e 1922 sob a alegação de que era necessário abrir espaço para a exposição comemorativa ao centenário da independência, não fosse suficiente para sustentar o romance. Assim, Carvalho criou dois protagonistas, a mulata Maria Idalina Rosário Gonçalves e o padre Ernesto, que vivem uma intensa paixão entre as vielas e os subterrâneos do morro.
Esta paixão enriquece o andamento do livro, oferece uma dinâmica que envolve o leitor, sobretudo pelos contrastes que carrega. Ernesto se martiriza entre o voto de castidade e as delícias dos encontros com Rosário que, casada e católica praticante, é também adepta do candomblé. Carvalho prefere, no entanto, limitar o romance do padre com a mulata e tudo termina no necessário pragmatismo da moça. Daí o autor se volta mesmo para as questões sociais que envolvem a demolição do morro. E salienta as perdas, inclusive as históricas, já que o morro abrigava a primeira igreja da cidade aproximando-se assim do chamado romance social muito em voga na década de 1930 e que gerou vários clássicos de nossa literatura.
Neste caminho chega mesmo a ressuscitar um maniqueísmo exagerado. Todo poder público é mau e são bons todos os moradores do morro, menos os superiores do padre Ernesto, também poderosos, que abrigam o convento jesuíta que ali existia. Isso poderia ter ganhado méritos não fosse o citado exagero e o fato de estar dito de maneira tão explícita. Até mesmo o português do armazém, Aurélio, que vivia bêbado, batia na mulher e caminhava para uma inevitável falência, era mais uma vítima das arbitrárias decisões governamentais que faziam rarear sua freguesia.
O maniqueísmo, enfim, torna o livro um tanto anacrônico. E o autor poderia se livrar da armadilha explorando um pouco mais os fatores históricos e como eles interferem na vida do cidadão comum. Em alguns momentos Marco Carvalho chega bem perto disso, como no instante em que descreve o processo de demolição do morro e a transferência do convento, da igreja e até dos ossos de Estácio de Sá, o fundador da cidade, para bairros distantes. Mas este investimento é tímido.
Dois romances lançados relativamente há pouco tempo fazem muito bem esta aliança entre os jogos do poder e a vida cotidiana dentro de ambiente histórico, O senhor do Lado Esquerdo, de Alberto Mussa, e O bibliotecário do imperador, de Marco Lucchesi.
Uma ladeira para lugar nenhum sobressai mesmo como um livro que alia entretenimento com denúncia social. E aí reside seu principal mérito. O fim do Morro do Castelo foi uma tragédia social e Marco Carvalho a denuncia de forma incisiva. Por outro lado, manipulando o caso amoroso de um padre com uma mulata, cria uma expectativa envolvente no leitor. Isso promove uma leitura agradável e divertida, além de enriquecida pelo ambiente histórico que, mesmo pálido, ainda tem importância em todo enredo.
Resta também uma linguagem bem fluente. Sem muito rebuscamento, prefere se valer do humor como base para transmitir com segurança uma mensagem de indignação, mas também de prazer.
Aquele gotejar de felicidade num mundo seco de afeto e de carne, a vida de renúncias e sacrifícios para se atingir a beatitude pregada pela religião, minava suas convicções, que já não eram mais assim tão firmes. Para quem ama e conhece o vale das ternuras, a felicidade é inadiável, e a eternidade, com todos os seus anjos, não vale um peido da mulher amada.
Sem se concluir como romance histórico, Uma ladeira para lugar nenhum resgata a literatura social para falar de misérias que, de certa forma, ainda assolam aquela gente que Graciliano Ramos chamou de “desgraçados”.