Dias de febre de literatura na cabeça (final)

Além do prazer com a leitura do livro de contos de Nivaldo Tenório, também tive motivos para comemorar, em 2014, a estreia de Josias Teófilo como autor de "O cinema sonhado"
Josias Teófilo, autor de “O cinema sonhado”
05/02/2015

Além do prazer com a leitura do livro de contos de Nivaldo Tenório, também tive motivos para comemorar, em 2014, a estreia de Josias Teófilo como autor de O cinema sonhado — um híbrido (se não estranho) ensaio de intenção biográfica que o jovem cineasta — neto do tão prolífico quanto frustrado diretor Pedro Teófilo —, publicado pela nova editora Lavra (SP), de Wagner Carelli, com o incentivo do Funcultura.

Trata-se de uma viagem meta-ensaística de Josias Teófilo que tenta responder a uma indagação do neto de um desconhecido: quem foi “Pedro Teófilo”?

Também os leitores não sabem. E só passam a ficar sabendo na medida em que as páginas do livro vão lhe dando existência mais real — na evocação de um passado relativamente recente — e que atravessa, certamente, um limite como o daquele quase quase verso composto pelo ator Robert de Niro, quando de uma entrevista na qual perguntaram sobre o seu pai e o “touro indomável” respondeu, sem firulas, a respeito do fantasma borrado que lhe deu a existência: “Meu pai? Ele sumiu na espuma do nada”.

O Teófilo neto se recusou a ver o Teófilo avô sumido assim, sem mais aquela. E, movido do interesse de resgatá-lo, primeiro pretendeu (quase brancaleonicamente) fazer um documentário de longa-metragem em torno dele. Depois, abandonou essa ideia — que dependia de financiamentos, etc. — e partiu para escrever esse livro, cujas idas e vindas entre biografia, citação de pensadores e autores variados, interesse por arquitetura e história local, tenta tirar do anonimato um rosto que, na multidão, disfarçava projetos na cabeça, escondia sonhos irrealizados e até visões insuspeitadas, que seu neto cuida de expor, explicar e até defender para si mesmo, sem omitir as muitas maneiras imaginosas pelas quais patinou, numa “espuma do nada”, sim, a cercar o Teófilo-madeleine das páginas que indagam sobre um “retrato na parede”.

Sob o sol do trópico e longe de biscoitos num frasco, é uma biografia lateral bem brasileira, reunindo “cacos” como se fosse possível formar um parque Güell da implosão de um edifício de azulejos de Delfim Amorim (assunto do curta-metragem que Josias dedicou a um verdadeiro “esquecido” da nossa memória impiedosa como um trator por sobre delfins & pedros).

Por isso, acompanha-se com interesse este caso do cineasta-inventor-vendedor-teosofista-aviador de passos borrados pela indiferença dos que o viram passar, entre inquietado por ideias (boas e más) e presa do tempo que lhe seria negado para alguma final realização qualquer. Tais rastros, na areia móvel do tempo, são as marcas que se encontram, neste O cinema sonhado, atrás de portas e dentro de gavetas de incertezas e anseios da imaginação fuçados (é a palavra) pelo biógrafo-narrador que, ainda jovem, nos faz entrever um possível ficcionista futuro que ajude a nos tirar do atoleiro do atual romance brasuca feito, aparentemente, para “agradar editores” e mimetizar uma espécie de “modelo internacional” (?), no crepúsculo daquela literatura que costumava atender a pulsões estranhas e inexplicáveis e fora das gaiolas — sempre — que o mercado ou a conveniência queiram impingir a novos autores originais e criativos (helás!) como Nivaldo Tenório e Josias Teófilo, surgindo fora do “esquema” que José Castello descreveu com justas palavras, em 31 de dezembro passado, no seu blog A Literatura na Poltrona (leia texto na íntegra na página 29 deste Rascunho):

“Sinto-me inquieto com certa tendência burocrática — a escrita como um ‘dever a cumprir’, um ‘trabalho de casa’ — que percebo na literatura brasileira contemporânea. Ficções bem feitas, arrematadas com competência, revisadas com afinco, mas vazias. Isso, de fato, me aborrece. Creio que é, antes de tudo, uma deformação de mercado. Autores escrevendo para agradar editores. Para chegar às listas de mais vendidos. Para praticar o tal ‘estilo internacional’. Na esperança tola de conseguir traduções e adaptações rápidas. Em resumo: para ‘cumprir tarefa’ e exibir depois o título de competentes. Sempre achei que literatura e competência se excluem. Não é pelo ‘bem feito’ que uma ficção arrebata o leitor. Não se trata de determinação, ou de aplicação. A literatura não tem relação alguma com o bom comportamento. (…) Aprecio os escritores silenciosos, que trabalham serenamente em seus escritos, quietos em seu canto, sem pirotecnias ou estardalhaços. Recentemente, perdemos um escritor — grande poeta — que agia exatamente assim: Manoel de Barros. Por isso talvez, infelizmente, e apesar de sua inegável grandeza, ele tenha sido tão desprezado.”

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho