O rei de Keto

Ouço dizer às vezes que todo crítico literário é um ficcionista, um poeta ou um dramaturgo frustrado; que só se tornou crítico por não saber escrever
Antônio Olinto, autor de “A Casa da Água”
05/02/2015

Ouço dizer às vezes que todo crítico literário é um ficcionista, um poeta ou um dramaturgo frustrado; que só se tornou crítico por não saber escrever. Poderia combater tal ideia com diversos argumentos teóricos. Nenhum deles, contudo, é mais forte do que um contraexemplo.

Antônio Olinto, mineiro de Ubá, talvez já nem seja lembrado como crítico e muito menos como poeta, apesar de ter começado sua atividade intelectual exatamente nessas áreas. Passou vinte anos como poeta e crítico antes de estrear na ficção. E seu primeiro romance é justamente a sua obra-prima: A Casa da Água.

Já se disse ser obra com dupla nacionalidade, ou continentalidade: pertence tanto à literatura brasileira quanto a africanas — porque trata de um episódio histórico ainda pouco conhecido e estudado: o do retorno maciço, logo após a Abolição, de africanos escravizados no Brasil para a África Ocidental, assim como de alguns brasileiros descendentes de africanos. A Casa da Água recria ficcionalmente essas vidas, revelando que a experiência do exílio é indelével, que os estrangeiros que retornam permanecem estrangeiros…

Olinto explorou depois outros temas, em O cinema de Ubá e Copacabana, livros de fundo mais memorialista; em Sangue na floresta, aventura amazônica, cujo protagonista é líder de uma comunidade de adeptos do Santo Daime; em Tempo de palhaço, que trata da formação intelectual e ética da geração de 60; e em Alcácer-Kibir, romance mais estritamente filiado ao gênero histórico.

Mas o universo fascinante de A Casa da Água continuou presente na sensibilidade do romancista — e acabou se expandindo numa trilogia, formada com O rei de Keto e Trono de vidro. Esse último, de tom mais político, é uma continuação propriamente dita de A Casa da Água, pois seus protagonistas são as duas inesquecíveis Marianas, a avó e a neta. Já em O rei de Keto, a personagem central, Abionan, é uma vendedora de inhames, pertencente à família real de Keto (cidade de etnia iorubá que fica hoje no Benin), que portanto não passou pela experiência do exílio, que não foi escrava nem é filha de ex-escravos — embora viva num tempo em que as antigas realezas já não têm mais força política.

É a partir de Abionan que Olinto penetra nas profundezas e contradições da sensibilidade iorubá e nos revela um mundo a um só tempo maravilhoso e tragicamente verdadeiro. Abionan (que quer dizer “nascida na rua” ou “na estrada”) sonha ser mãe do futuro rei de Keto, presa que ainda está à vida tradicional e às grandezas do passado. Após perder seu primogênito (sepultado no mesmo ponto da estrada em que ela nascera), procura retomar o convívio do marido e conceber um outro filho, dar à luz um novo rei para Keto.

O romance — que tem uma das aberturas mais lindas da literatura brasileira — se passa em cinco dias, começando e terminando no dia de Ifá e Exu (o primeiro da semana iorubá de quatro dias). Em cada um deles, Abionan vende seus inhames num mercado diferente, em cidades diferentes, conversa com diferentes clientes e companheiras de trabalho — e fundamentalmente lembra. Surgem, assim, inúmeras cenas e figuras, personagens extraordinárias (inclusive as duas Marianas), numa espécie de mosaico que não respeita cronologia — e nos permite viver o experimento indispensável da alteridade. O fim do livro é mágico, comovente, triunfal, quando Abionan se deita com o marido no mesmo lugar onde nasceu e enterrou seu primogênito, para gerar o futuro rei.

O rei de Keto saiu em 1980 pela Nórdica e depois pela Bertrand, como segundo volume da trilogia Alma africana. Os exemplares em bom estado estão entre R$20,00 e R$ 40,00.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho