TRADUÇÃO: Mariana Sanchez
Em 1922 foi publicado um livro cujo título é mais lembrado do que a própria obra: O estúpido século XIX. O autor era Léon Daudet, um dos príncipes da reação francesa, filho de Alphonse Daudet — já à época um clássico do século 19 —, que prosperou com sua reputação de polemista voluvelmente furibundo. Para muitos, e não somente os de direita, o título marcou as interpretações do ingênuo século 19 como a cicatriz de uma chicotada. Hoje sabemos que era uma calúnia daqueles que conseguiram fazer do século 20 a mais desnecessária carnificina da história. Não dispomos, para resumir sua arrogância sanguinária, de outro título tão memorável. Mas dispomos de uma obra que o retrata e define com a indignação bíblica que um crime destas proporções exige: Arquipélago Gulag, de Aleksandr Solzhenitsyn. Com menos sonoridade, mas irrefutável justiça, podemos chamar o século 20 de “o século do Gulag”.
Tocamos aqui em um tema que já foi espinhoso. Por várias gerações, ao longo da Guerra Fria, relacionar nazismo/comunismo com Holocausto/Gulag era um tabu. Esta rixa, que raras vezes chegou a ser debatida, está sendo decidida por morte natural, embora ainda agonizante. No entanto, a comparação e identificação entre ambas ideologias e regimes eram moeda corrente nas décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial, inclusive na esquerda (Léon Blum, Victor Serge). Mas talvez a última figura importante a quem tolerou-se falar do fenômeno como dois lados de uma mesma moeda, sem ser acusada de afinidades fascistas e de anticomunismo “profissional” (ou seja, mercenário) foi Hanna Arendt, antes de a Guerra Fria esquentar. Um autor tão ecumenicamente respeitado como Norberto Bobbio só se atreveu a tomar partido in extremis, meio século depois (1998), negando sua antiga afirmação de que o comunismo fosse “um grande ideal” mal aplicado, em comparação com o nazismo “teoricamente falso e moralmente mau”; ambos conceitos eram igualmente perversos. A questão do Holocausto/Gulag não foi menos difusa.
O que melhor ilustra suas ambiguidades é a atitude de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz e grande escritor de irrefutável integridade. Em um apêndice incluído em 1976 no livro É isto um homem? (1947), Levi afirma que os campos soviéticos “nada têm a ver com o socialismo, pelo contrário: destacam-se no socialismo soviético como uma mancha horrível. (…) Não se pode imaginar, por outro lado, o nazismo sem Lager”. Embora sempre que enumera as características essenciais e distintivas dos campos de concentração nazistas poderia estar falando de Gulag. Já em Os afogados e os sobreviventes (1986), porém, Levi cita Solzhenitsyn, aparentemente sem perceber que ao fazê-lo se contradiz. Em seu primeiro livro, Levi afirma que a principal diferença entre os campos do socialismo soviético e os do nacional-socialismo “consiste em sua finalidade”: nos campos soviéticos “não se buscava expressamente, nem mesmo nos anos mais obscuros do stalinismo, a morte dos prisioneiros”. Dez anos depois, no segundo livro citado, apoia-se em uma citação de Solzhenitsyn que, falando do Gulag, diz: “Porque os Lager (soviéticos) são de extermínio, não podemos esquecer”.
Verdade inegável
Nem todos foram tão candidamente equânimes como Levi, que procurava a verdade honesta e confusamente. E agora que finalmente a verdade é inegável — documentada nos próprios arquivos soviéticos —, sabemos também que a “polêmica” sobre a comparação dos campos comunistas com os nazistas era em parte fraudulenta: o que se procurava por um lado era esconder a verdade. Indelevelmente, para Sartre era tão intolerável quanto o sofrimento e a morte nos campos o fato de a imprensa ocidental se permitir mencioná-los. Um crítico tão refinado como George Steiner perpetrou a vulgaridade de repetir, ao resenhar Arquipélago Gulag, um grosseiro lugar-comum stalinista do qual deve ter se arrependido três décadas depois: “Dizer que o terror soviético é tão horrendo quanto o hitlerismo é não só uma simplificação brutal como também uma indecência moral”. No entanto, um de seus ídolos morais, Andrei Sajárov, não apenas o dizia como também considerava os campos soviéticos “protótipos dos campos de extermínio nazistas”. Solzhenitsyn, por sua vez, não hesita na comparação, que reitera e justifica constantemente. Os presos, diz, com uma concisão quevadiana, morriam “no forno gelado do desflorestamento ou asfixiados na câmara de gás de uma mina”. Inclusive, vai implacavelmente além. Uma das poucas pessoas com experiência tanto em campos soviéticos quanto nazistas, que viveu para formular isso com clareza, Margarete Buber-Neumann diz que é “difícil dizer o que é mais desumano: matar com gás em cinco minutos ou estrangular ao longo de três meses”. Sem tê-la lido, Solzhenitsyn explica: “Era uma máquina de extermínio declarada, mas, seguindo a tradição do Gulag, de ação prolongada para que os condenados sofressem mais e ainda trabalhassem um pouco antes de morrer”. Stalin, conclui, mandava os russos para morrerem no Gulag “com a garantia de uma câmara de gás, só que mais barata”. Os nazistas não eram piores; simplesmente contavam com uma indústria mais eficaz e produtiva: “para montar câmaras faltava-nos o gás”.
O fato é que tanto no caso do nazismo quanto do comunismo o resto do mundo se negou a acreditar na magnitude e no horror dos crimes. Nem os relatórios da clandestinidade organizada, nem os testemunhos pessoais que chegavam aos governos e à opinião pública do Ocidente atenuaram a minuciosa incredulidade que inspirava a escala genocida (sequer existia a palavra “genocídio”) dos despotismos totalitários. Somente a liberação dos campos nazistas pelas tropas aliadas e os registros fotográfico e cinematográfico obtidos à época conseguiram impor a verdade. E isso que, no caso do nazismo, como foi percebido por muitos, a incredulidade tinha que esquivar ou solapar as declarações gritantemente explícitas dos escritos de Hitler e os anúncios oficiais do regime nacional-socialista. Além disso, o nazismo não contava com a simpatia militante de um setor escandalosamente numeroso da intelectualidade ocidental, interessado em defender a imagem do regime. O caso do regime socialista russo é diametralmente oposto. Gozando do mesmo escudo da incredulidade, tinha além de tudo o apoio, a simpatia e obediência de muitas das vozes mais prestigiadas do Ocidente. Mas acima de tudo tinha a vantagem formal de identificar-se (e ser identificado) com as mais nobres e justas causas da política da época. E tanto o regime como seus defensores eram sinceros: não se cometiam crimes, defendia-se e antecipava-se pela imprensa — inclusive o crime, que ao ser justificado deixava de ser crime — uma causa cuja grandeza moral era reconhecida até mesmo por seus inimigos. A Rússia foi um dos aliados vitoriosos na guerra, e não houve tropas estrangeiras que descobrissem à força os horrores dos campos soviéticos, nem o público ocidental teve de aceitar a contragosto provas patentes e irrefutáveis que nunca foram filmadas livremente. O regime socialista durou até 1991, como um despotismo putrefato no qual os verdugos morriam na cama depois de uma longa e confortável aposentadoria paga por suas vítimas. Ao instalar no imaginário mundial a dantesca visão colossal de um sistema gêmeo ao nazista e com um número de vítimas várias vezes maior, Solzhenitsyn consumou com apenas lápis e papel um feito solitário que desencadeou, no caso do nazismo, uma guerra mundial.
Justiceiros da história
É o que explica a fervorosa ojeriza que lhe dedicaram todos os escritores que se consideravam os justiceiros da história e os colecionadores de aventuras políticas com passagens de ida e volta em que só os nativos perecem. Para eles, era um absurdo intolerável que o ideal do escritor como legislador secreto (ou não tão secreto) do mundo fosse encarnado por um reacionário, um “anticomunista profissional”, um crente religioso praticante. E ainda pior: do ponto de vista estético, a vida de Solzhenitsyn — os perigos mortais dos quais se salvou por milagre, os sofrimentos que soube superar sozinho, sua rebeldia indomável, o sacrifício sobre-humano que encarou ao enfrentar, anônimo e inerme, o Leviatã soviético, assim como seu triunfo final — talvez não tenha paralelo na história da literatura. Não há outro escritor que tenha cumprido, como Solzhenitsyn, a ambição nietzschiana de fazer de sua vida uma obra de arte.
Isso não se perdoa. É por isso que o último capítulo de The soul and the barbed wire — cujos autores analisam um por um todos os livros dele — é dedicado à recepção da obra de Solzhenitsyn no ocidente. É um texto obrigatório para entender os avatares de sua reputação. O rancor parte da política, mas vai além. Mary McCarthy, cuja incursão jornalística a Hanói durante a guerra do Vietnã ofereceu menos perigos do que suas heroicas brigas domésticas com Edmund Wilson, o definiu com sua notória franqueza: “Solzhenitsyn, para ser direta, é descortês e injusto em seu romance [Agosto 1914] com toda uma classe da sociedade: os ’liberais’ e os ’círculos avançados’ de 1914. […]. Quer se vingar, assim com se vingaria de nós se pudesse nos ouvir falar”. (É preciso levar em conta que, na terminologia americana de McCarthy, “liberais” significa esquerda e “círculos avançados” significa revolucionários.) Este infundado, calunioso rancor — se Agosto 1914 tem um “herói político” é Pyotr Stolypin, o Primeiro Ministro liberal (no sentido estrito da palavra), assassinado em 1911 por um dos membros dos “círculos avançados” — tem explicação. Se a obra de Solzhenitsyn, para ele, tem um sentido geral e absoluto é o de não deixar esquecer, pace Primo Levi, que não se pode imaginar um socialismo radical sem Gulag. Essa opinião, longe de ser isoladamente excêntrica, é compartilhada por uma esmagadora maioria de especialistas, incluindo a grande historiadora do assunto, Anne Applebaum. Em Gulag: A History (2003), Applebaum — colunista do Washington Post, um jornal de centro-esquerda — confirma com todo o aparato da historiografia anglosaxã a comparação milimétrica, a partir do verão de 1918, que Solzhenitsyn faz entre o socialismo soviético e o sistema concentracionário (o sistema chinês seria desenvolvido com equipe e know-how soviéticos). Os prisioneiros também pensavam assim: em sua gíria, sair do Gulag para a “liberdade” da sociedade comunista era apenas passar da “área pequena” à “área grande”, onde — como diz o verso de Ana Ajmátova — “os únicos que sorriam eram os mortos, felizes por poderem descansar”. Estas últimas, naturalmente, não são opiniões imparciais; mas sua parcialidade não é a dos verdugos ou seus teóricos, e sim das vítimas.
Agora fica claro por que Solzhenitsyn foi o autor mais demonizado da literatura mundial depois de Voltaire. A explicação mais corajosa e cabal talvez seja a de Octavio Paz, que parece dirigida a todos os Steiner e McCarthy: “Nossas opiniões sobre este assunto não foram meros erros, foram um pecado, no antigo sentido religioso da palavra: algo que afeta todo o ser. […] Esse pecado nos manchou e, fatalmente, manchou também os nossos escritos”. A imagem religiosa — de um autor serenamente descrente — não é gratuita. O diplomata americano e sovietólogo George Kennan definiu de maneira célebre a publicação de Arquipélago Gulag como “a maior e mais poderosa denúncia individual de um regime político jamais feita nos tempos modernos”. E o historiador Martin Malia, aderindo ao tom de Solzhenitsyn, diz que o Arquipélago é o que mais se aproxima de um Julgamento de Nuremberg do socialismo. Mas Solzhenitsyn vai mais longe, como diz em sua autobiografia literária O carvalho e o bezerro, parafraseando o governo soviético: “Arquipélago Gulag é a acusação com que inicia vosso juízo em nome da raça humana”.
Vencer o mal
A esfera em que Solzhenitsyn combate é nada menos do que metafísica. Não está enfrentando apenas um regime político ou uma ideologia assassina, o que seria uma mera revolução. Depois de desmascarar o adversário, Solzhenitsyn tem a grandeza de declará-lo um homem, como nós, em cujo peito coexistem o bem e o mal. Solzhenitsyn não quer subjugar este homem, mas vencer o mal que o subjuga: “as revoluções destroem somente os agentes do mal”. Como disse ele em seu discurso ao receber o Nobel: “Não se trata apenas de que a força bruta seja vitoriosa no mundo moderno, mas também de sua clamorosa justificação”. É por isso que não apenas comissários e aparatchiks e agentes assalariados e militares se viram ameaçados por Solzhenitsyn; também se sentiram vulneráveis os justificadores, não necessariamente comunistas, aqueles “homens livres bem alimentados”, aqueles “teóricos que nos explicavam por que deveríamos apodrecer em um campo”.
Tudo isso já cumpriu o ciclo enunciado por Humboldt para sempre: primeiro as pessoas negam as coisas, depois lhes dão importância e, por fim, as declaram amplamente conhecidas, que não interessam a mais ninguém e é melhor esquecê-las. Hoje em dia é possível declarar que o regime soviético foi, com toda modéstia, um simples “experimento social” (Eric Hobsbawn), como se se tratasse da social-democracia europeia. Mas na Rússia vive-se uma etapa mais avançada. Agora há novos teóricos que explicam à juventude russa por que seus avós faziam bem em apodrecer nos campos: “Havia razões lógicas por trás do uso da violência para obter um máximo de eficácia”. (Uma história moderna da Rússia: 1945-2006, texto escolar de Alexander Filippov). E um ex-verdugo, Vladimir Putin, persuadiu outros historiadores russos a não se deterem em algumas “páginas problemáticas” da história do país. “Não podemos permitir que nos imponham um sentimento de culpa.” Não é descabido pensar que se referisse, entre outros, a Solzhenitsyn, que se deu ao trabalho de aceitar um prêmio nacional em 2007. Há quem prefira pensar que aceitá-lo foi um erro de Solzhenitsyn ou, pior, um revelador gesto político de apoio a uma ditadura nacionalista e reacionária. São os mesmos que diziam que Solzhenitsyn, como nacionalista e reacionário, mentia sobre o Gulag. Além disso, querem condená-lo duplamente, pois se trata de um governo que constrói museus a Stalin, reabilita seu regime em campanhas de televisão e livros escolares, e confisca os arquivos das testemunhas do Gulag (a organização Memorial).
O leitor de Solzhenitsyn goza do privilégio de sorrir. Sabe que a mensagem implacável e atordoante de Arquipélago Gulag é a de que os crimes do regime soviético não apenas devem ser denunciados, como também — e a linguagem é religiosa, embora não agrade a nós, descrentes — ser aceitos como culpa e remidos pelo arrependimento. Tem mais. Para quem leu as memórias de O carvalho e o bezerro (1975) e sua continuação Invisible Allies (1995) — uma das autobiografias literárias mais extraordinárias, com mais aventuras e suspense do que uma estante inteira de thrillers —, Solzhenitsyn ter recebido Putin em casa sugere uma das manobras táticas descritas nas memórias, em que a terminologia estratégica é mais frequente do que a religiosa. Da clandestinidade, o escritor está permanentemente preparando ofensivas de opinião, mobilizando batalhões de amigos e simpatizantes, recolhendo baterias literárias, organizando retiradas. Receber Putin, então presidente, e aceitar a maior condecoração nacional era uma maneira de resgatar a adormecida atenção nacional, voltar a ser lido, fazer seu desprezado testemunho ser ouvido novamente. Com a garantia de que quem o ler saberá sem dúvida nenhuma que um homem como ele — que por razões táticas já esteve disposto a negociar com Brejnev, que estava disposto a receber um Prêmio Lênin para tornar ouvida a voz dos mortos — podia apertar a mão de Putin sem se sujar.
A glória como arma
Sabemos disso porque uma obra é um homem, assim como o homem é a obra. No caso de Solzhenitsyn isso se dá em grau superlativo; caso que, como disse Saul Bellow, justifica tirar a poeira da palavra herói. São poucas e mal contadas as vezes em que a literatura se viu honrada com um escritor total como Solzhenitsyn. Ao longo dos anos memorizou milhares de versos e diversas obras de teatro porque não podia escrevê-los em um campo; quando era possível fazê-lo, em letra microscópica, tinha de queimar imediatamente os minúsculos papeizinhos, ou enterrá-los em uma garrafa para um secular leitor futuro. Na prisão ou na aldeia perdida de seu “exílio perpétuo” as perspectivas de publicar em vida, ou algum dia, eram nulas. A glória só era concebível como arma. É por isso que quando este Monte Cristo da literatura recebe, com a improvável teatralidade de um episódio folhetinesco, o Prêmio Nobel apenas dez anos depois de publicar seu primeiro livro, sua reação é exclamar: “Agora posso falar com o governo de igual para igual!”. Diante de uma superpotência mundial, um regime blindado contra todo tipo de ataques internos políticos ou de força, Solzhenitsyn chega à conclusão — um tanto batida em outros contextos — de que só a literatura pode transformar a sociedade. “Todo aquele que tenha proclamado a violência como método deve inexoravelmente optar pela mentira como princípio”, declara. O modo de vencê-la é “ver o presente à luz da eternidade”.
A literatura nada deve a Solzhenitsyn como o feito de cumprir com seus propósitos extraliterários — de vencer a mentira para desmascarar a força — sem outros recursos que os literários. É fácil esquecer que o mais influente de todos seus livros (e na Rússia certamente mais que todos seus panfletos e discursos) é a novela Um dia na vida de Ivan Denissovitch, escrita em uma arrebatada epifania de quarenta dias. Tão perfeita e transparente é sua arte que o regime acreditou que poderia publicá-la impunemente. Seus dois romances “polifônicos”, O primeiro círculo (1968) e O pavilhão dos cancerosos (1968) estão entre os mais notáveis do século 20 graças ao detalhe ainda mais notável de que ninguém isento de malícia pensaria em classificá-los estritamente como “romances políticos”. Seu tema são as relações do homem com o mal, ou seja, com sua alma. Ao mesmo tempo que são políticos, sim, “à luz da eternidade”. O primeiro círculo foi confirmado em sua estrita veracidade humana e social por dois dos colegas de prisão de Solzhenitsyn que aparecem como personagens. O estupendo livro de memórias de um deles, Lev Kopelev (Ease my sorrows, 1983, último de três volumes), nos oferece distraidamente uma lição sobre a arte de Solzhenitsyn. Ele conta essencialmente a mesma experiência com os mesmos personagens, não sem brio, exatidão e profundidade, mas não chega aos pés da versão borgeana do inferno (“perfecto dolor sin destrucción”) do romance de seu amigo. Já O pavilhão dos cancerosos, que encantou Edmund Wilson por prender sua atenção ao longo de 700 páginas nas quais nada acontece, consegue o milagre cervantino de transformar-se em uma das grandes metáforas da história da literatura: o câncer como doença do espírito que é o Estado totalitário.
É importante destacar aqui que os três livros, assim como este prodigioso conto que é A casa de Matriona, são minuciosamente autobiográficos. Mas a obra de arte que é a vida de Solzhenitsyn supera epicamente estas experiências. O regime soviético foi, depois do próprio Solzhenitsyn, o primeiro a notar isso. É verdade que sua independência selvagem e sua insolência de haut en bas ao lidar com as autoridades — eram elas, ainda no poder, que tinham de se curvar, elas que deviam se declarar culpadas e pedir perdão ao povo — teriam terminado abrupta e anonimamente com um noturno tiro na nuca nos tempos de Stalin. Mas não só os tempos eram outros, como também o medo que os verdugos tinham entre si impedia a restauração dos bons e velhos métodos: o socialismo stalinista, por definição, exige um Stalin e todo o terror restante. Um livro extraordinário, The Solzhenitsyn Files (1995), compilado pelo primeiro biógrafo de Solzhenitsyn, Michael Scammel, recupera as minutas e documentos das deliberações da cúpula soviética sobre o romancista. Depois de ter criado uma unidade do KGB para se ocupar exclusivamente de Solzhenitsyn — a quem tentaram assassinar injetando rícino —, em dado momento Brejnev arengou os membros do Politburo. Lembrando-lhes que, afinal de contas, o regime havia enfrentado a crise do exílio da filha de Stalin e conseguido reprimir a contra-revolução na Checoslováquia em 1968, declarou que havia chegado o momento de enfrentar Solzhenitsyn, um simples escritor armado de lápis e papel: “Já aguentamos de tudo. Acho que sobreviveremos neste caso também”. Estava enganado, mas ao dizê-lo expressou a mais distinta homenagem que a força bruta já prestou às letras.
Peça minúscula
Por outro lado, o regime não era tão covarde nem tão incompetente quanto parecia. Brejnev e o chefe da KGB Andropov — que seria um de seus sucessores — viam Solzhenitsyn apenas como uma peça minúscula no grande tabuleiro estratégico em que a União Soviética jogava sua política imperial. O que Solzhenitsyn ignorava era que o regime sabia desde 1965, quando gravou uma conversa dele com um amigo, que estava escrevendo o que seria o Arquipélago Gulag, e, principalmente, que já havia enviado parte do trabalho ao Ocidente com ordens de publicá-lo imediatamente se algo lhe acontecesse. E a diplomacia da força — a União Soviética vivia seu auge imperial, como contam os três volumes de The Mitrokhin Archive (1999-2005) — requeria os serviços da mentira perante seus justificadores do Ocidente. O fato de ignorar o mecanismo básico da incomum atenuação do regime dá a medida de coragem e audácia de Solzhenitsyn. Mas sua temeridade tinha a lógica do zek (prisioneiro do Gulag) que vê a vida “lá fora” como uma mera pausa, “uma rara e temporária anomalia”, entre os campos e prisões em que a vida era vivida no socialismo russo. A temperança adquirida nessas circunstâncias é expressada em uma das passagens finais de O primeiro círculo, que narra um episódio autobiográfico. Quando vários reclusos de uma sharaska (prisão de regime especial para cientistas e técnicos a quem era permitido trabalhar em suas especialidades) encaram seu translado aos campos árticos, ou seja, ao trabalho físico escravo e à morte certa, o romancista comenta: “Nenhum destino na terra podia ser pior. No entanto, estavam em paz consigo mesmos, eram tão audaciosos como poderiam ser homens que perderam tudo”.
Há quem veja na atitude e atrevimento de Solzhenitsyn uma teatralidade dotada de vaidade e ambição, e nem todos pertencem à tribo dos justificadores de verdugos. Lev Kopelev zombava carinhosamente dos ares de zek calejado e destemido que Solzhenitsyn cultivava dentro e fora da prisão. O excelente romancista Vladimir Voinovich satirizou o escritor em seu romance Moscow 2042 (1986) com um personagem chamado Sim Simych Karnavalov, “o terrivelmente assustador chefe de um execrável nacionalismo russo”. Mas não sem antes ter reconhecido que Solzhenitsyn “se comporta com valentia, não se curva ante a autoridade ou evita o perigo, e está sempre disposto a se sacrificar”. O que é evidente é que se as ambições de Solzhenitsyn eram fama, riqueza e reconhecimento, podia tê-las saciado facilmente entendendo-se com o regime, até mesmo forjando uma elegante imagem de rebelde, como o poeta Yevtushenko. Igualmente evidentes eram os riscos que corria. Antigo zek, podia ser enviado de volta ao Gulag sem maiores trâmites. Conforme conta um dos agentes do KGB que participou do atentado contra sua vida, Solzhenitsyn sobreviveu por pura sorte (um dos tantos milagres — como sua cura de um câncer tratado no Gulag e em um rudimentar hospital do interior — com que a providência o distinguiu para sua missão). E a publicação de Arquipélago Gulag no ocidente (1973), programada para um futuro incerto, foi antecipada pela prisão, tortura e assassinato de uma de suas colaboradoras, que imprudentemente guardou uma cópia que havia datilografado clandestinamente e que tinha ordens de destruir.
Talvez o defeito mais grave de biografias como a de Joseph Pearce, Solzhenitsyn: A Soul in Exile, seja que em nenhum momento transmite a tensão dramática — às vezes trágica e épica, e também repentinamente folhetinesca — da aventura vital do escritor. É possível, porém, que Pearce não o tenha proposto, contentando-se com uma narrativa comum e sem sobressaltos, porque seu objetivo é outro: recuperar toda a dimensão espiritual e religiosa de Solzhenitsyn que seus biógrafos anteriores, em especial o melhor deles, Michael Scammel, tenham eludido ou escamoteado. Com efeito, Solzhenitsyn é quase inexplicável sem essa dimensão por assim dizer metafísica, como veremos. Mas o gênero apropriado para tratá-lo é o ensaio interpretativo. É isso o que fazem Edward E. Ericson e Alexis Klimoff em The soul and barbed wire em um capítulo de 30 páginas, que encerra um estudo livro a livro feito sobre a obra de Solzhenitsyn; o capítulo biográfico que o precede, de mais de 60 páginas, compete com vantagem com o volume de Pearce (igualmente informativa é a introdução do mesmo Ericson e seu coautor Daniel J. Mahoney da excelente antologia publicada em 2007, The Solzhenitsyn reader). Mas nada se compara, naturalmente, aos dois tomos autobiográficos mencionados anteriormente, obras-primas do gênero às que apenas se aproximam os três vertiginosos volumes de Arthur Koestler.
Dragão soviético
The oak and the calf e Invisible Allies, que na edição definitiva em russo compõem um único livro, contam a epopeia (qualquer outro termo soaria menor) do enfrentamento de Solzhenitsyn com o dragão soviético a partir de seu ataque ao establishment literário soviético em 1961 e a publicação russa de Um dia na vida de Ivan Denissovitch em 1962 até a publicação em Paris de Arquipélago Gulag em dezembro de 1973 e seu desterro em 1974. Seu valor estético é comparável ao de seus romances, embora a intenção original fosse a de preservar e apresentar uma versão do combate que confrontasse a falsidade das versões oficiais: assim como os nazistas, os soviéticos registravam e arquivavam tudo em um falacioso simulacro de legitimidade. Como Ivan e Arquipélago, estes textos autobiográficos foram escritos de uma tacada só, cuja intensidade é compartilhada pelo leitor. Não se pode resumir uma obra de arte, mas é indispensável vislumbrar a importância dos elementos biográficos em Arquipélago Gulag.
Em 1961, Solzhenitsyn era um ex-presidiário que lecionava matemática numa escola provinciana próxima a Moscou. Clandestinamente, passava a limpo o que havia composto mentalmente nos campos e escrevia novos livros de improvável publicação. Mas desde 1956 o país vivia um precário “esfriamento” político que Solzhenitsyn intuía como favorável e animou-se, cansado de viver à margem da história, a tentar publicar seu Ivan. Kopelev levou-o à principal revista literária, Novy Mir, bastião da vanguarda antistalinista cultural, dirigida por um poeta atormentado, Alexandr Tvardovski, que se refugiou do “reino desumano da mentira” soviética (Pasternak dixit) na probidade estética e no álcool. Douto nas vias tortuosas do despotismo, Tvardovski fez o próprio Jruschov ler o manuscrito, quem aprovou pessoalmente a publicação como uma manobra política contra os stalinistas que ainda assediavam o Kremlin. Como Byron, um belo dia Solzhenitsyn amanheceu “o homem mais célebre da terra”, nas palavras da poeta Ajmátova. Nunca mais publicaria nada na Rússia, exceto nos zamisdat clandestinos, até pouco antes da queda do império soviético. E, usado como uma arma por Jruschov, tornou-se alvo fácil dos neoestalinistas.
O mal-entendido da publicação de Ivan era duplo. Não apenas Jruschov acreditava que Ivan encarnava o superado passado stalinista (foi por isso que mandou publicá-lo), como o próprio Solzhenitsyn achava que sua narrativa era um piedoso resgate da memória, uma homenagem aos mortos. Depois se censuraria implacavelmente pelo erro. Cartas de outros sobreviventes de todos os cantos da Rússia começaram a chegar a ele e, o que é mais importante, cartas e anotações — em miseráveis pedaços de papel sujos e rotos, às vezes com uma única frase — de presos que denunciavam a existência de um Gulag que, como um espelho turvo e maligno, correspondia ao mundo descrito no romance. Só então Solzhenitsyn soube por que havia nascido e milagrosamente sobrevivido até ali: os zeks ainda vivos e em sofrimento, e o Gulag em atividade (ainda hoje vivem zeks no círculo Ártico, reabilitados embora não possam voltar a seus países) confirmavam que o socialismo soviético e o universo concentracionário constituíam uma unidade indissolúvel. Solzhenitsyn sempre havia se considerado antes de tudo um escritor. Mas Chejov já havia dito que os grandes escritores devem se meter na política “para defender o povo da política”. O tratamento romanesco era uma imperdoável vaidade literária. Havia toda uma “nação zek” cuja maioria, os mortos, tinha de falar com sua própria voz. Envergonhado por ter cedido à “tentação da barriga cheia” (como o amigo com quem havia sido condenado ao Gulag), Solzhenitsyn declara-se “cidadão zek” para sempre. Consciente da grandeza da empreitada, Solzhenitsyn procurou a ajuda de outros — incluindo o sofrido cronista dos campos de Kolima, Varlam Shalamov —, mas viu que teria de fazer isso sozinho. Sua grande série novelística de vinte volumes sobre a Revolução Bolchevique teria de esperar. E teria de escrevê-la enquanto enfrentava desarmado um regime todo-poderoso. Um romancista ocidental seria ridicularizado se propusesse um argumento tão absurdo.
Pequenos exércitos
Desde abril de 1958, Solzhenitsyn estivera organizando notas sobre o tema, mais por uma questão de consciência do que como projeto real. A partir de 1962, coloca-se em campanha — o vocabulário militar é imprescindível — com sua impressionante obstinação criticada por tantas boas almas. Sua experiência como escritor secreto (revelar microfilme à luz da lua, colar páginas de papel vegetal para escondê-las em encadernações, mandar mensagens na coleira de um cachorro) foi um fator decisivo. A admiração que o escritor desperta lhe permite recrutar colaboradores (sobretudo colaboradoras) dispostos a arriscar sua liberdade e o bem-estar de suas famílias. Uma delas diz, inesquecivelmente, que ajudava para compensar o fato de não ter estado no Gulag. Pequenos exércitos de datilógrafos, fotógrafos (para o microfilme), pesquisadores e mensageiros se submetem à ferrenha e minuciosa disciplina da clandestinidade. O trabalho era abundante, pesado e perigoso, além de repetitivo (era necessário copiar várias vezes cada texto, incluindo as ficções de Solzhenitsyn, cujo arsenal era a literatura). A segurança impunha complicações maçantes: construir esconderijos, evitar quartos com microfones, queimar todo o papel carbono — algo nem sempre fácil em moradias comunitárias —, reuniões secretas em estações de metrô desertas. Diplomatas, jornalistas e freiras transportavam manuscritos ao ocidente. Na primavera de 1968, Solzhenitsyn levou três datilógrafas à Estônia, onde, em 35 dias, passaram a limpo mais de mil e quinhentas cartilhas sem espaço entre as linhas, sempre com as janelas fechadas para que os vizinhos não ouvissem as máquinas de escrever metralhando. Solzhenitsyn redigia na solidão de uma cabana próxima, em jornadas de 18 horas, numa epifania similar à da escrita de Ivan.
A história de como soube que a KGB havia apreendido um dos manuscritos de Arquipélago Gulag é um thriller com felizes coincidências à la Dickens: estranhos que sabem estar vinculados por um segredo encontram-se por acaso em um necrotério e percorrem metade da cidade sem se identificarem — em caso de infiltração —, atrás de um cadáver ambulante que as autoridades queriam enterrar com discrição; noites de trem indo e voltando entre Moscou e Leningrado para decifrar uma simples letra de uma mensagem em código balbuciado confusamente… Um folhetim rocambolesco que conseguiu despistar a KGB e detonar um ataque ante a opinião pública mundial que determinou o começo do fim do reino da mentira soviética: Arquipélago Gulag conseguiu persuadir o estado maior dos justificadores ocidentais, a intelectualidade francesa.
A indelével e retumbante importância histórica de Arquipélago Gulag teve um efeito deformante. Apesar de ter vendido mais de trinta milhões de exemplares em mais de trinta idiomas, pesa sobre o livro um mal-entendido tão sério quanto o que acometeu Um dia na vida de Ivan Denissovitch quando foi publicado com a vênia de Jruchov. Um número talvez majoritário do público leitor o considera um livro de história para especialistas. Até a editora responsável pela magnífica edição espanhola usada para este ensaio o classifica como tal na capa. Como alguém já disse, não sem ironia, é preciso distinguir entre uma história da guerra de Troia e a epopeia homérica. Quem quiser uma simples história do Gulag estará melhor servido lendo Applebaum.
O biógrafo Michael Scammel, sem ter sido o primeiro, é o que melhor apontou que, com a perspectiva do tempo, é inevitável chegar à conclusão de que Arquipélago Gulag é a obra-prima literária de Solzhenitsyn, mesmo levando em conta que seus romances ocupam um lugar obrigatório na ficção do século 20. Ao justificar esta opinião, aproveita para explicar brilhantemente por que as seis mil páginas de Roda vermelha — a série sobre a revolução, que Solzhenitsyn considerava o magnun opus de sua carreira — fracassam, embora gloriosamente, se comparadas com seus outros romances e, em especial, com o Arquipélago. Solzhenitsyn concebeu a ideia em 1936, quando ainda era um leal cidadão soviético e marxista, convencido de que Lênin e sua revolução inauguravam uma nova e definitiva era humana. Mas quando finalmente se senta para escrever, toda sua vida, experiência e ideias desmentem radicalmente essa concepção inicial. A ideia original é virada do avesso (a revolução destrói a Rússia e envenena o mundo como um câncer) e perde sua razão de ser. Toda a arte e a famosa teimosia de Solzhenitsyn apenas conseguem dar um sopro de vida novelesca a episódios frequentes, porém insuficientes. Confesso ter lido somente os dois primeiros volumes, o bastante para eu concordar com Scammel. É de se imaginar que Solzhenitsyn tenha chegado à mesma conclusão quando desistiu de completar a série.
Original e extraordinário
O grande livro de Solzhenitsyn sobre a revolução russa, sem que o autor o propusesse, é Arquipélago Gulag, e ao mesmo tempo é um dos livros mais originais e extraordinários de toda a história da literatura, apenas comparável ao Memórias do duque de Saint-Simon, que às vezes é confundido com um documento histórico, ou a Anatomia da melancolia, de Robert Burton, que já passou por um estrambólico tratado sobre a depressão. Solzhenitsyn prevê o mal-entendido e trata de esclarecê-lo já no subtítulo: Arquipélago Gulag é um Ensaio de investigação literária. Evidentemente, diante do blindado despotismo soviético, o autor não podia aspirar a outra coisa (embora os especialistas se surpreenderam pelo tanto que conseguiu desenterrar sem acesso a fontes primárias), mas é importante lembrar que tampouco queria outra coisa. Solzhenitsyn poderia ter definido seu livro com as palavras de Tolstoi: “Guerra e paz não é um romance, muito menos um poema [épico], e menos ainda uma crônica histórica. Guerra e paz é o que o autor queria e podia expressar, na forma em que foi expressado”.
Solzhenitsyn diz que prefere não pensar em que tipo de escritor teria sido, incapaz que era para imaginar um argumento, se não o tivessem prendido arbitrariamente. De fato, suas primeiras ficções são claustrofobicamente autobiográficas. Sua força vem de um realismo microscópico, mítico e denso como a nervura de uma folha ampliada por uma gota d’água. A exatidão ressonante daqueles textos despertaria em Lukacs a tardia e sofística esperança de que o realismo socialista pudesse aspirar a uma autêntica arte maior. As dificuldades em imaginar um argumento, continua Solzhenitsyn, foram curadas com apenas dois anos de Gulag. Mas isso criava um dilema: “o Arquipélago oferecia uma possibilidade única e exclusiva a nossa literatura, e também à mundial: essa inaudita escravidão nos primórdios do século 20, em um sentido único que nada redimia, abria aos escritores um caminho frutífero, embora funesto”. Para além de sua experiência pessoal, no entanto, ficcionalizar o Gulag seria banalizá-lo. O principal personagem de O primeiro círculo, Nerzhin (que pode ser relacionado com Solzhenitsyn), havia formulado outra possibilidade: “a dor que experimentei e que vejo nos outros não poderia ser um gatilho poderoso para minhas especulações sobre a história?”.
Ao começar a escrever Arquipélago Gulag, anos depois, Solzhenitsyn compreendeu que seu sofrimento pessoal não passava de um dos temas de uma empreitada gigantesca, um elemento técnico que lhe permitia retratar milhões de pessoas sem cair na abstração: sua vida e suas experiências pessoais atravessam toda a narrativa como uma linha vermelha, tecendo um verdadeiro bildungsroman autobiográfico. Mas é o coro das narrativas biográficas dos zeks que constitui sua estrutura, com o baixo contínuo da “construção do socialismo”, que se relaciona e se confunde com a construção do Gulag. É através dele que podemos acompanhar como experiência real as diferentes tramas narrativas: a prisão, os interrogatórios, as confissões forçadas, os procedimentos fraudulentos ou simplesmente inescrupulosos, a indiferente rotina de sentenças aviltantes, os transportes e prisões de passagem, a brutal guerra perpétua contra os criminosos comuns — privilegiados pelo regime, com involuntária ironia, como “socialmente afins” —, o regime de trabalho, condições de vida e métodos de sobrevivência. Com mão de mestre, Solzhenitsyn se permite, sempre com sucesso, quebrar a cronologia, embaralhar assuntos, alongar-se em detalhes minúsculos e condensar décadas em uma página. Sua eficácia e elegância podem ser ilustradas com um exemplo. Solzhenitsyn permite-se virtualmente ignorar Stalin no texto principal, relegando-o quase que exclusivamente às notas; com isso, reforça seu papel secundário na criação do sistema socialista e em seu sustentáculo, o Gulag: “Stalin contribuiu com um toque de densa estupidez, despotismo mesquinho e autoadulação. Em todo o restante, limitou-se a seguir pelo caminho que já havia sido traçado”.
Naturalmente, Solzhenitsyn também usa seu instrumental de romancista com grande efeito. Sua capacidade de evocar aqueles momentos em que o homem esquadrinha sua condição humana e se equipara com o cosmo são momentos memoráveis em seus romances, como a caminhada de Kostoglotov (que pode ser relacionado com o autor) ao sair do pavilhão dos cancerosos, ou o passeio de Rubin pelo jardim, sob a neve, em O primeiro círculo. Em Arquipélago Gulag, ao retornar à sinistra prisão moscovita de Butyrki, Solzhenitsyn sente o equivalente à epifania de quem “volta para casa”, entrando nela com os passos ansiosos do exilado que volta à pátria, onde encontrará seus irmãos e semelhantes, os zeks. Como um apreciador exigente, julga a qualidade das celas, e quando o levam pela primeira vez à Lubianka, o considera uma verdadeira honra. Um trecho extraordinário é O gatinho branco, que ocupa quase 50 páginas do terceiro volume e é um relato de aventuras digno de Kipling. Nele, narra uma fuga fracassada de seu amigo estoniano Georgi Tenno, um virtuoso na arte da fuga, que um editor perspicaz deveria publicar em um livrinho separado, como fazem com o relato da fuga de I Piombi, que é um dos melhores capítulos das memórias de Casanova.
A voz do autor
A técnica “polifônica” que Solzhenitsyn usa em seus romances é aplicada com sucesso ainda maior em Arquipélago Gulag. À qual é preciso acrescentar um elemento crucial, que volta a aparecer somente nos magníficos volumes de memórias: a voz do autor. Solzhenitsyn relembra os 146 dias em que escreveu o Arquipélago, entre 1965 e 1967, como um período de iluminação: “Parecia até mesmo que não era eu quem escrevia; na verdade me deixava levar, com uma força externa que guiava minha mão”. Encontramos um eco daquele êxtase na voz do autor, que raras vezes transparece ou se deixa ouvir em primeiro plano, exclamando, exortando, denunciando, apostrofando, interpelando (“Ei, Tribunal de Crimes de Guerra de Bertrand Russel! Por que não usa isso como argumento? Ou será que não lhe convém?”), irrompendo em ironias e destilando sarcasmo. A indignação dá o tom, ensurdecedor como um megafone; mas no engenhoso autor de A casa de Matriona — obra de sustenida delicadeza chejoviana — não há como confundi-lo com decibéis descontrolados: como as longueurs de Balzac, seu objetivo é assustar os frívolos.
A excelente tradução para o castelhano captura como nenhuma outra este tom, que dá unidade e continuidade essenciais ao livro. Línguas mais polidas e menos enraizadas na fala popular do que o russo, como o francês ou o inglês, dão uma falsa impressão de vociferante grandiloquência ou vulgaridade (Solzhenitsyn brinca, pedindo desculpas por “não ter tido tempo” de escrever com maior refinamento). A intensidade retórica de Arquipélago, incisiva e obsessiva, lembra curiosamente a prosa febril de Simenon, também escrita em breves, alucinantes semanas de trabalho ininterrupto. No mais, a barba longa e a cabeleira bíblicas de Solzhenitsyn sobressaem enganosamente ao considerarmos seu estilo. Há uma aparente cisão entre o severo, carrancudo profeta das fotografias e a ubérrima abundância retórica de sua prosa, utilizada em todos seus registros, dos delicados e musicais aos brutalmente zombeteiros. O contraste é falso. Segundo seus colegas de prisão, como conta Pearce, Solzhenitsyn tinha um agudo senso de humor e era um hilariante imitador de gestos e entonações, de contundente precisão satírica.
Em The soul and barbed wire (assim como em The Solzhenitsyn Reader), Edward Ericson percebeu, além do efeito unificador da voz do autor, uma estrutura formal em Arquipélago Gulag. Ericson observa que, para dar uma dimensão imaginável ao Gulag — muitos prisioneiros não conseguiam acreditar ou entender o que estava acontecendo com eles —, Solzhenitsyn desenvolveu uma retórica de “heterogeneidade caleidoscópica”. (Quando a ladainha de violência e sofrimento parece maçante, o autor esclarece: “Não sou eu que me repito, é o Gulag que se repete”). A cavalgada apocalíptica a que Solzhenitsyn nos submete é frenética, mantendo-nos alertas ao alternar histórias pessoais com amplos panoramas históricos, análises sociológicas, indagações jurídicas, ensaios antropológicos sobre a “poderosa e singular estirpe da nação zek”, etc. Não obstante, Ericson aponta que as sete partes do livro se dividem simetricamente, girando em torno de um eixo, a quarta parte, intitulada A alma e o arame farpado. Nela, conclui a descida aos infernos e começa um “movimento de ascensão”, em que o sofrimento se transfigura em esperança com o episódio épico das rebeliões no Gulag.
A aguda observação de Ericson permite uma visão global de Arquipélago Gulag e do que Solzhenitsyn representa para a literatura do século 20. Na seção destacada por Ericson, encontramos a chave do que Solzhenitsyn tentou fazer e os caminhos que seguiu. É aí que Solzhenitsyn diz: “Gradualmente fui descobrindo que a linha que separa o bem do mal não passa entre os Estados, nem entre as classes ou os partidos: passa por todos e por cada um dos corações humanos. […] A partir de então, descobri a mentira de todas as revoluções da história: limitam-se a destruir os agentes do mal que lhes são contemporâneos (sem distinguir, em sua precipitação, os agentes do bem), mas o mal propriamente, porém aumentado, é recebido como herança”. E a conclusão é inesperada: diante do mal que tudo domina, a única salvação possível está com as vítimas. “Bendita seja, prisão, por ter estado em minha vida.” À mesma conclusão (que Ericson não menciona) havia chegado o herói de O primeiro círculo, Nerzhin: “Graças a Deus pela prisão! Ela me deu a oportunidade de pensar definitivamente sobre as coisas”.
O mal total que Solzhenitsyn teve de enfrentar — não só no Gulag, mas em todas as decisões morais de sua vida como cidadão soviético, quando encontrou o mal não apenas nos outros, mas em si mesmo — exigia uma negativa igualmente total. Isso explica seu repúdio pela modernidade, quando a “auto-deificação da humanidade” (Kolakowski) aboliu o próprio conceito do mal. Octavio Paz foi o único, que eu saiba, a notar que Solzhenitsyn chegou a ser, por decisão calculada, um homem pré-moderno: “sua voz não é moderna, mas antiga”. É por isso que Solzhenitsyn não apenas toma para si a missão de salvar a memória do Gulag, como também a de salvar o passado, todo o passado: dos provérbios e vocábulos descartados pela gíria ideológica até as tradições, a religião e, se necessário, a falta de outro genuíno passado histórico russo, o czarismo (que prova, com documentos soviéticos, ter sido menos cruel e nocivo que o socialismo). Não se pode esquecer que a formação intelectual de Solzhenitsyn, toda sua formação intelectual, foi marxista. E que ao repudiá-la teve de escavar os escombros do “liberalismo das catacumbas” (Robert Conquest) para buscar alternativas. Mas sua experiência como zek lhe oferecia um exemplo concreto: os que melhor e com mais integridade resistiam aos embates do mal em situações extremas do Gulag eram os crentes religiosos. Na tábula rasa moral do totalitarismo, Solzhenitsyn percebeu, como Platão depois da demolição epistemológica socrática, que as verdades essenciais devem ser conhecidas previamente: não as descobrimos, as reconhecemos.
“A justiça”, diz Nerhin em O primeiro círculo, “é a pedra fundamental, a fundação do universo”. Solzhenitsyn encerra o Arquipélago pedindo a lei, pedindo justiça aos vivos e os mortos. Mas as mil e oitocentas páginas de seu livro se referem a uma injustiça suprema, velha como o homem, embora apenas a modernidade a tenha entronizado como dogma ideológico: a injustiça máxima de que falava Platão, quando o injusto é considerado justo. Que é quando o único refúgio possível e desejado pelos justos é a prisão.
NOTA
Para este ensaio foram consultados:
Archipiélago Gulag: Ensayo de investigación literaria (1918-1965), três volumes, de Aleksandr Solzhenitsyn. Tradução de Josep Maria Güell, revisão de Juan Francisco García e supervisão de Ricardo San Vicente. Tusquets, 2007.
O carvalho e o bezerro (Difel, São Paulo, 1976), Invisible Allies (Counterpoint, Washington, 1995), Un día de la vida de Ivan Denisovich (1962), La casa de Matriona (1963), El primer círculo y Pabellón de cáncer (1968), August 1914 (edição completa de 1984), March 1917 (1990), de Alexandr Solzhenitsyn. The Solzhenitsyn Reader, de Edward E. Ericson e Daniel J. Mahoney (ISI Books, 2006). The Solzhenitsyn Files, organizado por Michael Scammell (Edition q, Chicago, 1995).
Solzhenitsyn: A Biography, de Michael Scammell (Paladin, Londres, 1986). The Soul and the Barbed Wire: An Introduction to Solzhenitsyn, de Edward E. Ericson e Alexis Klimoff. ISI Books, Delaware, USA, 2008. Solzhenitsyn: A Soul in Exile, de Joseph Pearce. HarperCollins 1999.