Que imagem o ocidental comum constrói a respeito de uma das nações mais tradicionais, míticas e exóticas do mundo — a nação japonesa? Sob o efeito permanente de estranhamento, causado pelo distanciamento cultural, por certo lhe virão à mente o recato, a moral conservadora zelosa dos ritos tradicionais, o senso de dever de seus estudantes de honra etc.
Não é uma imagem improcedente, mas tende a ser inconsistente se tida como algo a mais que uma perspectiva, uma simples perspectiva que enfoca apenas uma parte do todo, diversa dos demais tons do prisma.
Ao ocidental razoavelmente informado por certo esses “demais tons” não são desconhecidos. O erotismo (em suas mais variadas formas) é um deles, presente mesmo no rígido código de conduta dos samurais da era Edo. A miséria moral e econômica é outro matiz que colore de modo diferente e não habitual o país do milagre econômico, tecnologicamente avançado, que soube como nenhum outro adaptar-se à era moderna (entenda-se: aos valores socioculturais do ocidente).
Tais tons colorem essencialmente as ruas, as pontes, os rios e edifícios do distrito boêmio de Asakusa. E é esse cenário/personagem o foco do romance A gangue escarlate de Asakusa, obra de início de carreira do renomado escritor Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de 1968.
A obra e seu contexto
Como dito, o livro se passa nesse reduto boêmio do Japão, num interstício entre duas eras, a Taisho (1912-1926) e a era Showa (1926-1988). É importante levar esse dado em conta porque a Asakusa do livro resulta diretamente das convulsões socioeconômico-culturais desse contexto.
A era Taisho se caracterizou sobretudo pela instabilidade política e econômica, mas levou adiante o processo de “ocidentalização” do Japão, iniciado na era precedente, a era Meiji. O período que se seguiu (era Showa) buscou dar resposta a tais questões, tendo em seu início o advento do sufrágio universal masculino, o que indica que o país ia de encontro a uma política democrática estável, mas a Lei de Preservação da Paz veio na esteira, restringindo direitos: uma medida que não ignorava os ecos da revolução russa que já ressoavam pelo país.
No entanto, a sombra de um outro elemento externo haveria de pairar por sobre a nação nipônica, produzindo seus efeitos na população proletária: a recessão de 1929.
O fechamento das fábricas do setor [de fiação de seda] está se propagando por todo o Shinshu e tende a se alastrar para as províncias de Shizuoka, Yamanashi, e o país inteiro.
Mais de cem mil operárias estão desempregadas.
O infeliz estado dessas mulheres tornará propício aos “obscuros aliciadores” o recrutamento a fim de “trazê-las para Asakusa.
Firmemente atenta a todo esse contexto, a obra imergirá profundamente em datas e fatos históricos (como o grande terremoto da era Taisho, em 1923), bem como a reminiscências do narrador (que não se dissocia do autor), delineando as relações de influência ou, quando não, para simplesmente estudar suas implicações nos personagens.
Disso resulta que tudo o que se encontra no livro tem como função precípua caracterizar a cidade, que (semelhante aos romances naturalistas do século 19) é a verdadeira protagonista da narrativa. A gangue escarlate do título é mais um dos aspectos que compõem o mosaico, não obstante o tratamento individual que o autor dispensa, em capítulos, a cada um de seus membros.
Forma e conteúdo
A princípio, o leitor pode ter a ideia de que a gangue escarlate é uma versão oriental dos Capitães da areia, de Jorge Amado. Mas Kawabata não dispensa aos seus jovens contraventores a mesma “condescendência” que justifica seus atos por conta das anomalias sociais próprias das sociedades neoliberais. Em sua maioria, esses jovens são produtos de um meio no qual são assimilados (como a jovem Oharu de quinze anos que, “sem sair do lugar e sem saber como e quando”, é vendida); esse processo de assimilação ou se dá de forma inconsciente (Oharu) ou quando esses jovens aprendem as regras do jogo, passando então a ludibriar os próprios ludibriadores (Yumiko, a jovem de “cabelos tosados”). Mas, em geral, as relações sociais não são tão estratificadas.
A estrutura peculiar do livro pode ser assim resumida: o autor/narrador trafega pelo submundo dessas ruas, parques e casas de shows sempre acompanhado de um dos membros da gangue, atento a tudo, sendo que o produto de tais registros é a obra que o leitor tem em mãos. Seu escopo e estrutura dão assim à narrativa um teor de uma crônica de costumes desse lugar que “derrete constantemente os moldes velhos” e “os transforma em novos moldes”; Asakusa, um local cindido entre a tradição oriental e a modernidade ocidental, onde puxadores de riquixá dividem espaço com táxis e outros veículos, em noites movimentadas que não parecem ter fim.
Esse ritmo urbano pode dar a impressão de ser o principal fundamento do estilo do livro: uma narrativa digressiva, fragmentária, que não investe numa profunda introspecção dos personagens e constantemente se volta ao passado de valor documental para contrapô-lo ao presente. Mas em poucas páginas o leitor poderá supor que a posição singular que o narrador assume na história — como um turista ávido por informações diante de um reduto cultural inédito — explicaria melhor essas oscilações na narração, bem como o tratamento dado aos personagens.
Esse ritmo narrativo e a concepção da obra, bem como os aspectos culturais nipônicos, desafiam o leitor que, na expectativa de aprofundar-se no interior de tipos como Aki-ko, Umekichi, Hiko e mesmo Yumiko (a presença mais constante da obra), haverá de se frustrar… Curiosa ainda é a forma com que o narrador dialoga com o leitor: ele expressa uma familiaridade mútua dos acontecimentos cotidianos, como quem está dialogando com um conterrâneo bem informado dos fatos:
Os caros leitores devem ter lido no jornal de 13 ou 14 de julho uma reportagem com esta manchete em tipos gigantescos [Os fios de seda de Shinshu estão ameaçados de extinção?]
Certamente isso deriva do fato de que o romance foi publicado episodicamente num jornal de Tóquio entre 1929 e 1930, fator este que contribui para sua contemporaneidade (mas que aliena um pouco o leitor ocidental).
Por fim, A gangue escarlate de Asakusa é obra menor de Kawabata, embora não seja, de maneira nenhuma, prescindível. A crônica do momento, o registro de um tempo e espaço tão capital de um país em processo de mudança espiritual — um Japão pré-segunda guerra mundial, aberto ao mundo, com seus párias sociais e marginalizados ouvindo Jazz e dançando Charleston em cabarés decaídos, ou mendigando e extorquindo passantes, em ruas e becos imundos… Esse registro humano e sensível responde pelo valor da obra.
E ao leitor já familiarizado com a prosa de Kawabata, um atrativo adicional: a oportunidade de conhecer uma variante de sua arte (impressionista e introspectiva em grande parte), num ponto de virada expressivo de sua carreira.