Caxias do Sul, Serra Gaúcha, um fim de tarde gelado no inverno de 1973. As cortinas abertas da janela do quarto mostram a cerração se espessando mais e mais à medida que a noite se aproxima. No toca-fitas portátil, a melancolia da flauta de The fool on the hill, o psicodelismo de Strawberry fields forever (e seu enigmático “I buried Paul”, que tanta especulação havia rendido anos antes), a sonolência lisérgica de Blue Jay Way, todas as canções parecem reverberar a mesma tensão de medo e mistério. Quinze anos bem entrouxados num cobertor de lã, o jovem não consegue desgrudar os olhos da história a um tempo horripilante e bizarra que lê, a do fantasma de um gato persa cinzento: o fascínio adolescente pelas narrativas de terror vem de muito antes que o termo gótico ganhasse a dimensão que hoje tem. A cerração é autêntico produto sul-rio-grandense, mas pode fazer as vezes de fog na composição de um apropriado cenário. Já o Magical mystery tour e o conto O estranho caso de Sir Andrew Carmichael são dois produtos genuinamente britânicos. E o álbum dos Beatles parece ter sido composto para servir de trilha musical a alguns dos contos do livro A mina de ouro (1971), de Agatha Christie.
Porto Alegre, novembro passado, encerramento do ciclo Fronteiras do Pensamento 2014. Ao final da conferência A biblioteca imaginária, do argentino Alberto Manguel, o mesmo leitor, agora na meia-idade, assiste ao palestrante ser indagado sobre sua relação com a literatura policial, gênero que sempre teve grandes mestres entre seus apreciadores — um deles, Jorge Luis Borges, seu conterrâneo mais ilustre —, ao mesmo tempo em que boa parte do público e da crítica lhe torce o nariz com o desdém devido a algo tão menor que chega por vezes a ser chamado de subliteratura. Manguel tem uma resposta pronta e certeira: desmerecer o gênero policial é renegar Crime e castigo, Macbeth, Hamlet e várias outras obras capitais da literatura universal. E vai além: há quem sustente que todo romance é, no fundo, um romance policial. O leitor lê porque quer desvendar a história, quer saber o que vai acontecer; a única diferença, como aliás bem assinalou Luis Fernando Verissimo, é que no romance policial há crime e corpo assassinado.
Durante os quarenta e um anos que separam os dois episódios acima, alguma coisa certamente mudou, pelo menos na percepção deste leitor de toda uma vida de histórias policiais, em geral, e de Agatha Christie, em particular. Em 1973, a Rainha do Crime estava viva, produzindo e, octogenária, ainda não havia publicado seus derradeiros trabalhos. Cai o pano, a última aventura de sua criação mais célebre, o detetive Hercule Poirot, viria a ser lançado dois anos mais tarde com uma tiragem inicial recorde de 200 mil exemplares, cem vezes maior que a de seu livro de estreia. Dois anos antes, havia recebido das mãos de sua mais nobre admiradora, a Rainha Elizabeth II, o título de Dama da Ordem do Império Britânico. Sua obra era editada no Brasil pela Nova Fronteira e as edições esgotavam-se rapidamente, repetindo um padrão mundial de desempenho. Naquele tempo, se havia preconceito contra o gênero ou contra a autora, ele não era tão flagrante como passou a ser nas décadas seguintes. Seus livros perfilavam-se com dignidade na seção de literatura inglesa da bem abastecida biblioteca do colégio, ao lado de Jane Austen, Emily Brontë, Charles Dickens, Oscar Wilde e outros clássicos. À medida que capitalizava o sucesso editorial para chegar ao Guiness book como a autora mais vendida de todos os tempos, ultrapassando hoje a espantosa cifra de quatro bilhões de exemplares em todo o mundo, traduzida para 103 idiomas e perdendo os dois primeiros postos apenas para a Bíblia e para Shakespeare, pelo menos no Brasil ela paradoxalmente acabava alimentando o preconceito contra a própria obra e arrastando consigo toda a literatura da qual é a mais legítima representante. Foi outro inglês, Graham Greene, quem anos antes havia começado o imbróglio ao declarar que dividia sua produção literária em obras “sérias” e “de entretenimento”. Daí a se imaginar que seriedade não combinava com vendas e que best-seller era sinônimo de entretenimento e, por conseguinte, de coisa menor, foi um tapa. E se Manguel, em 2014, acha oportuno fazer um desagravo público à literatura policial, isso indica que ele é ainda pertinente e também que o preconceito não é um fenômeno restrito ao cenário brasileiro.
A perícia do ficcionista
Nascida em Torquay, Devon, em 1890, Agatha Christie descende da linhagem mais castiça da literatura policial, a Whodunnit? ou Who done it? (Quem fez isso?) do jargão do gênero, criada por Edgar Allan Poe e seguida por Sir Arthur Conan Doyle. Poe, antes de ser lembrado como o pioneiro das histórias policiais, é reverenciado hoje como um dos fundadores da literatura norte-americana e do conto moderno, do qual foi o primeiro teórico, e também por ter inaugurado outros segmentos importantes além da trama de mistério, como a ficção científica e as narrativas de terror. Já o escocês Doyle, que sucedeu a Poe e experimentou grande sucesso à sua época, ressentia-se do fato de ser reconhecido “apenas” como o criador de Sherlock Holmes, o mais famoso detetive da ficção de todos os tempos e que serviu de paradigma a todos os que lhe sucederam. Doyle bem que tentou matar o personagem ao final do quarto livro, mas foi obrigado a ressuscitá-lo por pressão do público; tentou mais tarde tirá-lo de cena na obra que batizou com o sugestivo nome de His last bow (no Brasil, O último adeus de Sherlock Holmes) e que termina com Seu último caso; resistiu dez anos até lançar o nono e derradeiro volume com novos casos do detetive; entre uma tentativa e outra de acabar com a fonte de seu sucesso, dedicou-se a vários outros projetos literários, mas nenhum deles conquistou uma ínfima parte do êxito obtido com os nove livros protagonizados pelo excêntrico inquilino da 221-B Baker Street.
Agatha Christie publicou seu primeiro livro, O misterioso caso de Styles (1920), três anos após Conan Doyle ter publicado O último adeus…, e com ele nasce Hercule Poirot, um personagem que guarda algumas semelhanças com Sherlock Holmes — que é inclusive referido no romance —, mas também (e principalmente) grandes diferenças. Poirot, que protagoniza nada menos do que quatro dezenas de livros, contra os nove de Holmes, é assim descrito em sua primeira aparição:
Poirot era um homenzinho de aparência extraordinária. Devia ter pouco mais de 1,60 metro de altura, mas exibia uma imensa dignidade. A cabeça tinha exatamente o formato de um ovo e ele sempre a inclinava ligeiramente para o lado. O bigode estava sempre bem aparado, com uma rigidez militar. A impecabilidade de suas roupas chegava a ser quase inacreditável. Tenho a impressão de que um pouco de poeira o teria feito sofrer mais que um ferimento à bala. Contudo, aquele dândi exótico, que agora coxeava visivelmente — algo que me entristeceu —, tinha sido um dos mais destacados elementos da polícia belga.
Nessa brevíssima descrição podem ser encontradas as características essenciais do personagem que serão depois aprofundadas no decorrer da narrativa e nas histórias seguintes. Poirot foi viver na Inglaterra junto com um grupo de refugiados belgas, que deixaram a pátria ao final da Primeira Grande Guerra, e faz um belo contraponto à figura de Sherlock Holmes. Enquanto o detetive de Doyle é um tipo essencialmente britânico e nunca atuou como policial, Poirot é o estrangeiro de aspecto e modos um tanto ridículos que cruzou o Canal da Mancha já aposentado de suas funções na polícia; além disso, desde o primeiro caso, a despeito de sua fama, quase sempre entra em cena desacreditado por seus pares, que o tomam por velho e ultrapassado antes de vê-lo em ação. Holmes é alto e magro; Poirot, baixo e roliço. Holmes é descuidado com a aparência; Poirot, extremamente vaidoso. Holmes se assemelha a um cão farejador, sempre à cata de vestígios mínimos, mas concretos, que possam elucidar seus casos, e a lupa é um dos objetos associados à sua imagem, assim como o chapéu, a capa e o indefectível cachimbo. Já Poirot se interessa pela psicologia do crime e do criminoso; ele trata um caso como se fosse um quebra-cabeça onde todas as peças soltas devem se encaixar perfeitamente para formar o conjunto; usa para isso suas “pequenas células cinzentas” e diz que não precisa deixar o conforto de sua poltrona para solucionar um caso, basta que lhe tragam os fatos e ele os organizará, com ordem e método, que são suas palavras mais caras, para chegar à solução; seu símbolo por excelência é um bigode de absurda simetria. Holmes tem seu narrador oficial, o Dr. Watson, fiel escudeiro que participa de todas as aventuras (exceto uma, narrada pelo próprio Holmes), mas fica aquém das habilidades intelectuais do detetive a quem serve; Poirot também conta com seu Watson na figura do Capitão Arthur Hastings, que narra algumas das histórias e gosta eventualmente de se vangloriar de suas virtudes como investigador, embora seja tão limitado quanto o assistente de Holmes.
Apesar de não ter a sofisticação estilística de Poe, nem mesmo a de Doyle, a Rainha do Crime avançou muito no caminho que seus ilustres antecessores haviam antes desbravado para se tornar o maior expoente da literatura policial de todos os tempos.
O misterioso caso de Styles foi recusado por seis casas editoriais antes de finalmente merecer uma edição de dois mil exemplares. Curiosamente, o fato de pertencer a um segmento que fazia sucesso na época em que a principal atração ameaçava sair de cena não lhe garantiu automaticamente o interesse das editoras, que desde sempre trabalham com o olho voltado para o mercado. Talvez por ser uma mulher a reivindicar espaço num território ainda dominado pelos homens possa ter inibido sua aceitação. Bastou, contudo, publicar uma vez para nunca mais encontrar dificuldades quanto a isso, ao contrário. De 1916, quando começou a escrever o primeiro livro, até sua morte, sessenta anos depois, Agatha Christie produziu e publicou cerca de uma centena de obras: sessenta e seis romances e quinze coletâneas de contos considerados do gênero policial, seis romances não policiais escritos sob o pseudônimo de Mary Westmacott, nove peças de teatro, duas coletâneas de poesia, duas autobiografias e um livro infantil, além de participações em outros livros. Apesar de não ter a sofisticação estilística de Poe, nem mesmo a de Doyle, a Rainha do Crime avançou muito no caminho que seus ilustres antecessores haviam antes desbravado para se tornar o maior expoente da literatura policial de todos os tempos, lugar que ocupa soberana e sem rival à vista.
Depois de O misterioso caso de Styles, Agatha Christie passou a lançar a média de um livro por ano, mas o sucesso só viria de fato com o sétimo, O assassinato de Roger Ackroyd (1926), uma trama cuja solução foi absolutamente inovadora para os padrões da época e que muitos ainda consideram sua obra-prima. Protagonizada por Poirot, essa novela é emblemática do estilo da autora e sintetiza também as duas principais características de um bem sucedido entrecho policial: 1) o desenvolvimento tem de seguir um padrão que o leitor já sabe qual é no momento em que se dispõe a ler uma nova história, e 2) esta tem de ser original e verossímil, sob pena de frustrar esse mesmo leitor. É um jogo de equilíbrio dos mais delicados e requer muita perícia do ficcionista. Quanto mais fantasiosa for a história, mais bem estruturada e convincente ela tem de ser para sustentar os movimentos que abalam sua verossimilhança. Dito noutras palavras, a trama detetivesca típica lida o tempo todo com o clichê; ao escritor cabe assumi-lo e fazer com que soe a novidade. O humor é sempre uma alternativa nesses casos e ajuda na hora de atenuar os inevitáveis estereótipos que sobrevêm na composição dos personagens, em especial os detetives.
Galeria de detetives
Ao mesmo tempo em que Agatha Christie inovava em O assassinato de Roger Ackroyd, menos pelo assassino se valer de uma artimanha tecnológica na arquitetura do crime e mais pela forma como o mistério é solucionado, o que foi motivo de polêmica à época, ela também ambientou suas primeiras histórias num cenário que lhe era muito familiar, a sociedade campestre inglesa do pós-guerra, com sua aristocracia decadente, seus militares reformados, suas velhotas fofoqueiras, sua moral e hábitos provincianos. A personagem Caroline Sheepard de Roger Ackroyd foi um primeiro esboço para Miss Jane Marple, a solteirona mexeriqueira que estreia em Assassinato na casa do pastor (1930) para protagonizar doze romances e vinte contos. Miss Marple vive sozinha no fictício vilarejo de St. Mary Mead, cuidando do jardim e tricotando. Profunda conhecedora da natureza humana, ela perscruta a maldade, que sabe andar solta no mundo, com a limpidez de seus olhos azuis de vovó carola. Sua habilidade detetivesca está em relacionar fatos e personagens que acaba de conhecer com situações já vividas e tipos que habitam seu microuniverso interiorano. Miss Marple consegue deslindar os mais intrigantes mistérios na base da bisbilhotice mais descarada. Ao contrário de Poirot, que já nasce pronto e acabado no primeiro livro, Miss Marple, que não era muito benquista em St. Mary Mead por ser extremamente metida e estar sempre pensando o pior das pessoas, torna-se mais simpática a partir de seu segundo caso.
Poirot e Miss Marple são personagens magistrais, desses que qualquer escritor gostaria de ter concebido. Embora sejam os mais carismáticos, eles não são os únicos na galeria de detetives de Agatha Christie. Já no segundo livro, O inimigo secreto (1922), aparece o casal Tommy e Tuppence Beresford. Amigos de infância, eles se apaixonam, casam, têm filhos e envelhecem entre um e outro dos cinco livros (quatro novelas e uma reunião de contos) que protagonizam em cinco décadas. Trabalham para o serviço secreto durante a Primeira Guerra e, quando o conflito acaba, criam a Jovens Aventureiros Ltda., pois não conseguem viver longe da ação com a qual estão acostumados. Tommy é lento e sensato, Tuppence, ágil e impetuosa, e a esse contraste a dupla deve o sucesso na solução de seus casos. Em O segredo de Chimneys (1925), surge o Superintendente Battle, da Scotland Yard, um homem tosco que não demonstra suas emoções e cuja especialidade são os casos de política e de intriga internacional. Battle vai reaparecer em outros quatro livros, um deles ao lado de Poirot. Há também o que dá título à coletânea O detetive Parker Pine (1934) e que vai retornar mais tarde em alguns contos esparsos. Parker Pine é funcionário público aposentado e se autodefine como “um detetive do coração”. Assim ele anuncia seus serviços profissionais no Times: Você é feliz? Se não for, procure o Sr. Parker Pine, 17 Richmond Street. Para trazer a felicidade de volta a seus clientes, ele tanto pode se envolver em complexas investigações quanto construir algumas soluções nada ortodoxas, mas nunca deixa de cumprir com o que promete.
Em O detetive Parker Pine, surge Ariadne Oliver, uma mal-humorada escritora de romances policiais que vai depois reaparecer como amiga de Hercule Poirot em várias outras histórias. Ariadne Oliver é outro tipo impagável. Dona de uma cabeleira que não consegue domar e de uma intuição que considera aguçada, mas que sempre falha, é louca por maçãs e criou um detetive finlandês, Sven Hjerson, pelo qual nutre um notável desprezo. Está sempre disposta a colaborar com Poirot na solução de seus casos, mas sua ajuda nunca é de grande valia. Ariadne Oliver é, em alguns aspectos, o alter ego de sua criadora, que inclusive demonstrou sentir certa antipatia por Poirot em algumas situações.
Personagens que vivem no entorno das estrelas principais estão sempre reaparecendo, como Raymond West, o sobrinho escritor de Miss Marple, o Inspetor Japp da Scotland Yard, amigo de Poirot, dentre outros tantos. Exímia criadora de tipos, Agatha Christie não se descuidava de nenhum detalhe que dissesse respeito a suas criações, o que incluía uma rede de relacionamentos que as acompanhava de livro para livro.
Engenhosa avó
Especialista em urdir e esclarecer mistérios, a Rainha do Crime viveu ela própria um episódio nunca esclarecido: no final de 1926, então casada com o piloto da RAF Archibald Christie, recebe dele a notícia de que está apaixonado por outra mulher e quer o divórcio. Na mesma noite, ela sai de casa levando uma pequena mala e desaparece misteriosamente para ser reconhecida onze dias depois num hotel onde havia se hospedado com nome falso. Amnésia, vingança, golpe publicitário para estimular a venda de livros? Apesar de muita especulação, ninguém nunca soube o que de fato aconteceu. O casamento duraria ainda dois anos, findos os quais Agatha manteria o sobrenome do marido apenas para assinar suas obras, pois dessa forma já era bastante conhecida. Casou-se novamente em 1930 com o arqueólogo Max Mallowan, quatorze anos mais jovem, com quem viajou pelo mundo em expedições que depois serviram de cenário para suas histórias. O fato curioso é que em família e nos círculos íntimos, a escritora era tratada por Mrs. Mallowan.
Em 1934 é publicado Assassinato no expresso do Oriente, outra obra estupenda e até hoje seu maior sucesso comercial. Preso nos Bálcãs por uma tempestade de neve, o luxuoso Expresso do Oriente é palco de um violento homicídio, um intrincadíssimo mistério que Poirot irá decifrar nas poucas horas em que o trem permanece parado. A solução subverte mais de um dos cânones até então vigentes para apresentar uma história que jamais poderá ser reprisada, tão original e poderoso é seu argumento e tão dramático o seu desfecho.
Quem contempla uma conhecida fotografia de Agatha Christie trabalhando em sua máquina de escrever não consegue imaginar que aquela senhora roliça, de cabelos claros encaracolados, vestida com austeridade vitoriana e lembrando uma simpática e recatada avó, tinha uma engenhosidade para criar tramas que não foi até agora batida, sequer igualada. Uma história nunca lembra outra, todas são absolutamente únicas e envolvem sempre o pior da natureza humana. A Dama do Império Britânico nunca teve pudores para lidar com a sordidez: assassinatos, sequestros, espionagem, roubo, suspense, casos do mais puro terror, tudo se transforma em matéria-prima genial para suas histórias. Um inocente poeminha infantil inglês é o ponto de partida para um de seus livros mais célebres, O caso dos dez negrinhos (1939). Dez pessoas são convidadas a passar um fim de semana na ilha de um anfitrião desconhecido. Um a um começam a morrer e, aterrorizados, chegam à conclusão de que um deles é o assassino. Essa mescla de thriller de suspense e história de detetive tem uma urdidura das mais complexas e foi também uma novidade em sua época. Para evitar acusações de racismo, teve o título original alterado quando foi publicado nos Estados Unidos, de Ten little niggers para And then there were none (E não sobrou nenhum). Outro livro importante também tem por mote uma cantiga infantil: em Os cinco porquinhos (1942), Poirot é contratado para investigar um crime ocorrido há quatorze anos e cuja pretensa autora morreu na prisão, deixando à filha uma carta onde alegava inocência. Para solucionar o difícil caso, o detetive só conta com a memória dos que testemunharam os fatos, dentre eles o verdadeiro assassino, e com seu incrível talento para juntar peças aparentemente irrelevantes e desconectadas, formando o quadro completo com a solução do problema.
A casa torta (1949) traz o caso da morte por uma injeção letal de um rico comerciante grego casado com uma mulher cinquenta anos mais jovem e cujo desfecho, nada ortodoxo, chocou muitos de seus leitores. Em Convite para um homicídio (1950), considerado o mais brilhante caso de Miss Marple, os moradores de uma vila inglesa leem no periódico local o estranho anúncio de um crime que será cometido às 18h30min de uma sexta-feira, 29 de outubro, na residência de Miss Blacklock, convidando para o evento os amigos da família. Todos pensam tratar-se de uma brincadeira ou de um jogo, enquanto um crime de verdade está em andamento.
Em 1972, respondendo à pergunta de um tradutor japonês, Agatha Christie preparou uma lista com seus dez livros favoritos. Por ter sido elaborada quatro anos antes de sua morte, a advertência de que se tratava da escolha daquele momento, sujeita a alterações circunstanciais, talvez possa ser agora ignorada e a tomemos por definitiva, pois não se tem conhecimento de que exista uma outra posterior. Para os futuros e curiosos leitores que se sintam intimidados pela quantidade de títulos, uma seleção feita pela própria autora é preciosa. Ei-la: O caso dos dez negrinhos, O assassinato de Roger Ackroyd, Convite para um homicídio, Assassinato no expresso do Oriente, Os treze problemas para Miss Marple (1933), Hora zero (1944), Noite sem fim (1967), A casa torta, Punição para a inocência (1958) e A mão misteriosa (1942).
Em sua atuação como dramaturga, a Rainha do Crime também tem um recorde: A ratoeira, peça que estreou em Londres em 1952 e desde então, de forma ininterrupta, segue em cartaz. O conto que lhe serviu de argumento permanece até hoje inédito na Inglaterra, seguindo o desejo da autora de que só fosse publicado quando a peça deixasse de ser levada, mas faz parte, nos Estados Unidos e também no Brasil, da coletânea Os três ratos cegos e outras histórias (1950). Outra peça fundamental é Testemunha de acusação (1953), baseada no conto de mesmo nome inédito no Brasil, que foi levado às telas por Billy Wilder em 1957 com um elenco estelar que incluiu Marlene Dietrich, Tyrone Power e Charles Laughton e que recebeu seis indicações ao Oscar.
As histórias de Agatha Christie foram e continuam sendo adaptadas para o cinema e para a televisão. O maior destaque é o filme Assassinato no expresso do Oriente, dirigido por Sidney Lumet em 1974, que reuniu outro elenco soberbo: Albert Finney como Poirot, Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, John Gielgud, Sean Connery, Vanessa Redgrave, Richard Widmark e Ingrid Bergman, que mereceu o Oscar de Atriz Coadjuvante por seu papel.
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Porto Alegre, dezembro de 2014. Uma tarde chuvosa de domingo é sempre um convite às lembranças. Uma delas, a de uma folha pautada de cor amarela onde iam sendo listados todos os títulos lidos e ainda por ler da Rainha do Crime. Na última vez em que foi vista, do número total, algo em torno de setenta e cinco, faltavam quinze ou dezesseis para que fossem todos lidos. Cadê a lista? Acabou perdida em alguma mudança de endereço. Não importa, a Wikipédia é bem mais eficiente, embora não tão valiosa, porque não tem dono nem autoria conhecida. Magical mystery tour virou agora um CD, o aparelho de som é mais sofisticado, mas a ordem das canções parece não ser a mesma daquela gravação caseira da década de 1970. Cadê aquela fita cassete? Os livros de Agatha Christie continuam na estante, as capas se esfarelando, a ortografia ultrapassada; muitos, porém, já foram renovados e fazem agora parte de uma moderníssima biblioteca digital. A mina de ouro foi relido em papel, exatamente como há quarenta e um anos, e serviu de inspiração. Strawberry fields forever recomeça a tocar.