Há quem acredite (e defenda essa tese com veemência) que só se conhece um lugar quando se está nele, quando se viaja até ele. E é mesmo comum empregar o verbo “conhecer” nesses casos: “conheci Pequim”, “conheci Istambul”. Discordo tragicamente dessa opinião: uma experiência turística de três ou quatro dias não pode, para mim, merecer o nome de “conhecimento”.
Por isso, considero um desperdício gastar dinheiro com passagens e hotéis quando há livros muito mais baratos, quando há romances que nos fazem conhecer — agora no sentido mais rigoroso do termo — um lugar.
Penso, por exemplo, em Os tambores de São Luís, de Josué Montello. Talvez não haja, talvez não seja possível escrever outro texto que descreva São Luís, que explique São Luís, que funde São Luís como esse romance. Nem toda a vasta obra romanesca do próprio Josué, que tem a mesma cidade como cena básica, alcança tal façanha. E estou falando de um corpo de 26 romances, publicados entre 1941 e 2001. Quando estive lá, não vi nada que já não tivesse lido.
A ação principal se passa em 1915, e dura apenas algumas horas, enquanto o velho Damião caminha pelas ruas da cidade. É madrugada, mas ele vai testemunhar o nascimento do seu trineto. Nesse percurso, entra num botequim para comprar fósforos e constata ter havido ali um duplo homicídio: o dono do estabelecimento está caído atrás do balcão com uma pancada na cabeça; e um homem desconhecido, vestido com roupas estrangeiras, está de bruços sobre uma poça de sangue, com uma facada nas costas. Com medo de se envolver no crime, Damião segue seu caminho, ouvindo ao longe o som dos tambores da Casa das Minas — mais tradicional e importante templo de culto aos Voduns jejes (equivalentes aos Orixás nagôs) existente no Brasil.
E são esses tambores ancestrais (pois Damião tinha nascido escravo) que o transportam ao passado e fazem a narrativa retroceder a cerca de 1830. O leitor passa a acompanhar a vida de Damião, que é a própria síntese da história de São Luís, desde o seu nascimento numa fazenda; a fuga com o pai (que funda um quilombo); a destruição do quilombo e o retorno à fazenda; seu ingresso no seminário; sua alforria; seu casamento; e sua luta abolicionista — até o fatídico encontro com o desconhecido morto no botequim, que irá proporcionar o grande impacto final.
Além da profunda exegese que Montello realiza em relação à cidade, Os tambores de São Luís talvez seja o grande romance brasileiro sobre a escravidão. Damião é uma personagem única: nasce escravo, se revolta, sofre horrores inconcebíveis (para nós, contemporâneos) quando volta à fazenda; torna-se o maior latinista do Maranhão, mas ainda assim é impedido de tomar ordens, por conta da sua origem; e passa por vários percalços, perde empregos e amigos, porque não se cala diante dos abusos e das ilegalidades que vitimam escravos e seus descendentes. Não tenho dúvida de que Damião é um dos maiores e mais humanos heróis da ficção brasileira.
O romance nos dá ainda uma galeria inestimável de exuberantes e complexas personagens negras (coisa rara na literatura do Brasil), além de traçar um dos quadros mais perfeitos da mentalidade escravocrata, consonante com sua abjeção. Temo que o leitor reconheça ainda seus vestígios, nos dias que correm.
A obra-prima de Josué Montello foi publicada em 1975, pela José Olímpio, tendo algumas reimpressões. Depois, foi a vez da Nova Fronteira, sendo a última, de 2005, integrante da coleção comemorativa dos quarenta anos da editora. São edições fáceis de achar, em bom estado, por até R$ 20.