O que acontece quando um poeta resolve escrever crônica? Esse é o diferencial evidente que coloca Fabrício Corsaletti em posição privilegiada, entre os melhores cronistas contemporâneos brasileiros. De seus 13 livros já publicados, em diversos gêneros, Ela me dá capim e eu zurro é seu primeiro de crônicas, reunidas a partir de um trabalho consistente e contínuo desde 2010 na Folha de S. Paulo. A coletânea foi formada por 59 de seus melhores textos, a partir de 80 crônicas publicadas no jornal.
A prosa de Corsaletti é surpreendente, inquietante, bem humorada e tem a qualidade invejável de fazer o leitor querer interagir com o autor do texto. Suas crônicas podem assim ser consideradas como textos-diálogo, uma vez que instauram no leitor esse desejo estranho de procurar pelo e-mail do autor, somente para poder responder, comentar, acrescentar algo à narrativa. Na ausência do autor, fazemos isso com quem esteja mais próximo, o marido, o chefe, ou mesmo alguém que esteja fazendo uma breve visita, tal é a inquietude a que o autor submete seus leitores.
O texto de Corsaletti é vivo e, se podemos dizer que sua poesia remete à nostalgia, isso não acontece quando o autor troca de gênero literário, o que permite ver em sua escrita uma polifonia própria. O poeta Fabrício Corsaletti é diverso do cronista de mesmo nome. Em prosa, encontramos um escritor ativo, disposto a observar o cotidiano e trazer suas experiências para o plano do palpável. É quase possível ver ou sentir a cidade paulistana através de sua narrativa animada, engraçada, solta e leve, ainda quando versa sobre temas aborrecidos e tensos.
Não há o sarcasmo próprio, a ironia desavergonhada de um Verissimo. Também não está presente a conversa espichada, tranquila e questionadora de Zuenir Ventura. Isso concede a Corsaletti uma voz única e inconfundível, e a vontade de continuar lendo as crônicas faz com que a leitura seja fácil e empolgante. Lembro de passagem a dificuldade que é criar um livro de crônicas que não aborreça o leitor, pois, geralmente, a sequência de leituras em mesmo tom e timbre acaba por ser maçante, especialmente quando temos textos cansativos, melancólicos ou muito datados.
Liberdade e frieza
Diante de grandes cronistas do passado recente, como Rubem Braga, Ubaldo, Drummond e Verissimo, o autor não se diminui e cria pérolas como Cuscuz paulista, Manhã, ou a própria crônica que dá o título ao livro, em que, corajoso e ousado, Corsaletti é capaz de criticar Shakespeare com a liberdade e frieza de quem critica o novo álbum do U2.
Na maior parte das crônicas, é evidente que Corsaletti lança mão de sua desenvoltura na seara poética, pois suas palavras são exatas, precisas, e essa habilidade torna sua prosa leve, fluida, harmônica, trazendo pensamentos díspares e montando-os com perfeição em um mosaico de recortes, retratos de tempos e lugares repletos de significado e afeto. Cada palavra está no lugar em que deveria estar. Cada pensamento é cuidadosamente expresso em frases que levam seu toque de originalidade, algo de sua história e caminho.
A condição de poeta e seu olhar crítico, fantasioso, inventivo e divagante sobre o que ocorre no entorno da vida é também a capacidade única de Corsaletti de fazer o leitor rir de si próprio e das cenas que ele recria de forma exímia. Como bem apontado por Augusto Massi, a leitura atenta permite desvendar “uma imaginação rocambolesca” em suas melhores passagens. E, como o texto editorial consigna na quarta-capa “Nestas páginas convivem, lado a lado, o esquete cômico e a meditação trágico-existencial, a micronarrativa do cotidiano e o devaneio poético de longo alcance (…) Tudo isso flagrado por um olhar lírico-cinematográfico”.
Sem perder de vista o tempo presente, Corsaletti revela, em uma de suas tantas entrevistas que circulam pela internet, que é leitor razoável de prosa. Ao mesmo tempo em que lê muitos romances e livro de contos, mantém distância segura das redes sociais: no Facebook, o autor possui apenas a sua fanPage como escritor, onde limita-se a repetir as publicações de jornal e outras notícias relevantes da carreira. Nada de tempo gasto no redemoinho de tempo das telas, em significativo prejuízo da produção literária.
Passando aos textos, Ela me dá capim e eu zurro é, como o autor aponta, um verso que Shakespeare escondeu dentro de uma de suas peças, e que ele descobriu a partir da leitura do livro Shakespeare de A a Z, da editora L&PM. Sinceridade é algo que não falta ao autor, revelando que sequer se interessou pela leitura do texto completo. Apenas se surpreendeu e pôs-se a refletir sobre a cena. Assim como se encantou com a cena, o escritor nos fez o favor de puxar essa reflexão e colocar nela seu holofote de poeta: em cima dessa vetusta frase, proferida (ou melhor, publicada) em 1594, uma constatação sobre o que seja o “amor feliz”, o amor entre dois no qual ninguém deve se meter, ou, como ele próprio resume “o amor simples, realizado, cotidiano, entre duas pessoas comuns, nem feias nem bonitas, nem perfeitas nem mal-intencionadas, metade sublimes metade neuróticas, com pouco tempo durante a semana mas com sábados e domingos razoáveis, em cujas manhãs ela lhe dá capim e ele zurra e vice-versa. Em outras palavras, quem é que sabe o que acontece entre dois que decidiram viver juntos?”.
Meu amigo esquimó assusta um pouco, com sua dose intensa de nonsense, quem inicia a leitura do livro e depois Conversa contemporânea e Das 9h às 18h também saem um pouco da raia da crônica mais tradicional que se espera em um jornal diário como a Folha, flertando um pouco mais com o gênero dos contos. Apesar disso, as crônicas de Corsaletti em geral seguem uma linha bastante definida, especialmente acerca da capital paulista e de passagens de uma solteirice jovem, descolada e sem grana, na cidade brasileira mais abastada do país — o que não deixa de ser um desafio hercúleo ou uma capacidade ímpar (somente própria de poetas) de divertir-se com bem pouco.
Sua conversa desinteressada pode ser experimentada pelos diálogos precisos das crônicas Fim de festa na Pompeia ou A avó do Antonio Prata, ou como nas reflexões iluminadas de O mercado de Pinheiros: “Sei lá, todas aquelas frutas e legumes frescos, coloridos… Dá vontade de tomar um ácido e ficar ali até entender o que o pimentão está cochichando à berinjela (…) Dá vontade de ver um filme, dos mais extravagantes, de Almodóvar. Dá vontade de reler a ‘Ode à alcachofra’, de Neruda. Acho que todo mercado me dá vontade de falar espanhol”.
Vida e literatura, asfalto e cama, público e privado, prosa e poesia misturam-se neste livro de forma mágica, numa alquimia própria capaz de permitir que o texto de Fabrício Corsaletti entre de vez no nosso cotidiano, povoe nosso imaginário, compartilhe nossas andanças silenciosas e passe a fazer parte da nossa vida. Ao fechar o livro, dá uma vontade doida de ligar pra ele e perguntar: cara, você quer ser meu amigo?