Minha única proposta para este milênio

Nem leveza, nem rapidez, nem exatidão, nem visibilidade, nem multiplicidade, nem consistência.
30/11/2014

Nem leveza, nem rapidez, nem exatidão, nem visibilidade, nem multiplicidade, nem consistência.
Minha única proposta é outra.
Intensidade, Messias. INTENSIDADE.
É o que não pode faltar jamais na literatura brasileira.
Expandir os cinco sentidos até o limite da sanidade, acelerar a memória e a presciência no autódromo da razão.
Messias, meu amigo, acenda todas as luzes de tua mente, de teu corpo. Não tenha medo de brilhar mais que o sol.
Acenda a luz dos quartos, da sala, da cozinha, da área de serviço, dos banheiros e dos corredores.
Deixe a eletricidade fluir livremente através dos fios de cobre de tua residência mental & corporal, sem temer a sobrecarga.
Sem temer os vizinhos e a polícia.
Messias, querido meu, ligue todos os eletrodomésticos.
Deixe a tevê e o aparelho de som no volume máximo.
Sugue toda a energia da hidroelétrica mais próxima.
Repito: intensidade é a palavra-chave.
Pare de pensar pequeno.
Antes de começar a escrever um poema, um conto, uma crônica ou o capítulo de um romance, vá até a janela aberta e grite o mais alto que puder.
Expulse de tua vida a autocrítica assassina.
Está entendendo, Messias?
Antes de começar a escrever, atire pela janela a autocrítica homicida, esse demônio estéril & esterilizante.
Escancare a porta da geladeira. Deixe a corrente de ar frio violentar a corrente de ar quente, alimente o furacão que habita tuas entranhas.
Não seja tão ponderado, meu amigo. Não seja tão comedido.
Onde você aprendeu a exercitar essa tepidez emocional & poética?
A natureza, quando dá ou tira a vida de suas milagrosas criaturas, não é nem um pouco ponderada & comedida.
Intensidade, Messias. INTENSIDADE.
Não desenhe personagens mornos ou situações cálidas. Não domestique as metáforas e as imagens.
Teu cotidiano pode e deve ser sossegado, nem muito frio nem muito quente — é saudável que seja assim: equilibrado —, mas a ficção e o verso não podem e não devem.
Localize o mais rápido possível, no feixe de nervos que aciona teu corpo e teu espírito, o finíssimo nervo da invenção. Da fantasia literária.
Localize o danado. Aprenda a vibrá-lo com intensidade. Sempre com intensidade.
Acenda sem medo todas as luzes de teu texto, ligue sem receio todos os eletrodomésticos de tua sagrada escritura.
Coração & cérebro são máquinas que precisam bombear na potência máxima.
Aprenda também a controlar, apenas com a voz interior, as avalanches e os maremotos de tua pulsão literária.
A partir de tudo o que você leu & viveu, molde mundos, vastos mundos, não mundinhos insignificantes.
Intensidade, querido Messias — você já percebeu, espertinho — quer dizer PAIXÃO.
Não escreva um único período ou uma única estrofe que não sejam atravessados num segundo pela eletricidade da paixão.
O piloto-automático, amigo meu, atire o maldito pela janela. Assuma o controle da astronave.
Enamore-se da perigosa dinâmica do voo. Dissolva-se nela. Torne-se o comandante, a nave e o próprio voo.
Não tente justificar racionalmente esse amor.
Não invoque motivações pragmáticas — dinheiro, sucesso, dever moral, etc. — pra escrever um poema, um conto, uma crônica ou o capítulo de um romance.
Escreva porque não escrever não é uma opção. Assim como não respirar ou não dormir não são uma opção.
Esteja armado, em guerra. Paixão combate a doença e a morte.
Paixão, querido Messias — você já percebeu, espertinho — quer dizer EPIFANIA.
Mesmo que você more num deserto gelado ou fumegante, não escreva nada que não germine rapidamente.
Não escreva nada cujas raízes não sorvam a santidade do solo, cujos galhos não procurem a iluminação celeste, cujas folhas não lancem estrelas sobre as pessoas.
Enfim, camarada, não escreva se não for pra disseminar uma nova ecologia de valores & vontades, crenças & desejos.
E acima de tudo, Messias, aumente o volume da música sempre que os senhores da verdade se pronunciarem dogmaticamente.
Querido, não interiorize a dissonância alheia. Não empreste teus ouvidos ao ruído das ruínas.
Já há uma multidão muito grande em tua mente, em teu corpo. Você não precisa dar abrigo a multidões estrangeiras.
Não valorize demais os agentes bancários, literários & editoriais que não valorizarem você.
Muito menos os jornalistas, os críticos, os professores e os conselheiros sentimentais.
Não me valorize demais, por favor. Não memorize este discurso.
Terminada a leitura, esqueça-o imediatamente.
Não perca seu tempo com polarizações bestas nem debates obtusos.
Doce ou salgado, fermentado ou destilado, popular ou erudito… De tudo o que os extremos oferecem, aprecie o melhor.
Faça listas inúteis:
Os dez melhores livros que já leu. Os dez melhores filmes a que já assistiu. As dez melhores peças teatrais, composições musicais, obras de arte…
Depois jogue as listas no lixo.
Viaje pra fora e pra dentro, pra longe e pra perto, Messias.
Pra fora: visite uma comunidade indígena. Organize um grupo de leitura numa prisão.
Você perceberá que longe não é apenas Paris ou Tóquio. Longe não é medido somente em quilômetros. É também a distância que separa os círculos socioeconômicos.
Pra dentro: visite teus medos & frustrações.
Organize uma expedição de um indivíduo só — usted, hombre — rumo ao teu futuro interior.
Imagine-se com duzentos anos de idade, depois com mil anos, então com dez mil.
Imagine-se com duzentos quilômetros de largura, depois com mil quilômetros, então com dez mil.
Imagine-se estrela. Galáxia. O universo.
Lembre da simetria que coreografa a dança da realidade.
Lembre das palavras do chileno aloprado-iluminado, parceiro de Moebius: tudo o que você será, já está sendo. O que saberá, já sabe. O que você busca está a sua procura, porque está em você.
Você, valoroso, é a divindade civil de tua própria religião. É um potente gerador de iluminações profanas. Aproveite-as bem.
Epifania, querido Messias — você já percebeu, espertinho — quer dizer INTENSIDADE.
Expresse tua verdade com determinação, mesmo que no início seja apenas tua verdade. Está entendendo?
Invista toda a energia na renovação. Não perca tempo com revoluções.
Revoluções são injustas e sangrentas.
Não valorize demais os mistagogos e os consiliários.
Não me valorize demais, por favor. Não memorize este discurso.
Terminada a leitura, esqueça-o imediatamente.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho