Autor menor com recaídas de grandeza (2)

O primeiro é um dos artistas supremos da prosa em qualquer língua, peregrino “primitivo” das águas do oceano
John Steinbeck, autor de “As vinhas da ira”
29/11/2014

O primeiro é um dos artistas supremos da prosa em qualquer língua, peregrino “primitivo” das águas do oceano — “grande o bastante para nele se tentar dizer a verdade” —, pregador num deserto de homens sedentos de visões e manchados do sangue que jorra em Red badge of courage (a melhor obra de Crane). E este é realmente inclassificável no seu Maggie (1893), fundador da “visão de estrada” que vai arrebatar o subestimado Jack London, autor de histórias “rudes” até que se lê aquela tão finamente obra-prima da autodestruição, o Martin Eden (1902), retrato sutil do fracasso e do colapso psicológico. Bem, fica difícil pegar de uma etiqueta dourada e colar na lapela dos merecedores de prêmios e altas distinções da crítica apenas porque escreveram naquele tal modelo que Wilson foi buscar no espelho do seu armário de elucubrações refratadas do gosto do “velho continente” que contaminou Henry James (mas não o desnaturou) e fez Sinclair Lewis se desviar, no final da vida, de hotéis baratos e cidades pequenas demais para um prêmio Nobel.

Após o interregno — meio “europeu”, também — dos romances da Lost Generation (Fitzgerald, Hemingway, Stein) de permeio entre as duas guerras, o jogo de ambivalências se faz pela retomada do “regionalismo”… Que nunca é apenas regionalismo — como o entendemos no Brasil — e que, na América, pode abrigar tanto Ellen Glasgow quanto William Faulkner, mas que tem seu representante mais largo em John Steinbeck, queiram ou não queiram.

Primeiro, não esqueçamos que o mundo de Steinbeck não se reduz, jamais, apenas ao realismo social dos anos negros, nos quais a sua formação pessoal se faz bordejando crises (Depressão, anos pré-guerra, etc.). Segundo, aquele realismo de “superfície cinzenta” usado por ele (e outros) nunca chegou a confiná-lo longe da literatura de sensibilidade confidencial, onde se pode construir “um mundo dentro de um mundo” — por mais tenuous que essa “segunda voz” tenha se tornando nos seus últimos trabalhos distantes das terras bravas como dos pastos infernais das longas histórias ecoadas dos modelos “bíblicos” (de pregador e/ou psicopata) que, sim, existiam nele.

Durante toda a sua vida de escritor, John Steinbeck escutou dizer que seu trabalho pouco tinha de “criativo” — até porque não foram muitos os críticos a perceberem o desinteresse steinbeckiano (nesse sentido) no ofício moderno… E a indiferença ao experimentalismo que afastaria a “compreensão humana imediata”, para o Steinbeck dos vales de Salinas, ou seja, o melhor e o mais verdadeiro JS, longe daquela “versatilidade” que ele próprio alardearia, depois, como defesa. O mergulho desse escritor no seu cenário – planeta oposto ao de Faulkner — aproximou-o de uma simpatia animal para com as forças da natureza, mas ninguém pode esquecer que o John vagabundo da juventude (alguém como o personagem de William Holden, em Picnic) foi um amador de estudos de biologia, e não por acaso: os instintos animais e o “santuário” do Oeste lhe pareciam ao menos seguros no meio da loucura construída — conscientemente — pelos homens: “Meus sentidos não estão acima da crítica, mas são tudo que tenho. Minha ambição é ver o corpo inteiro — da minha janela de sal e tempestade, joio e trigo derramado pelo caminho. Eu não quero pôr antolhos para separar o que há de ‘bom’ e de ‘mau’ na estrada, limitando ainda mais a curta visão que tenho das coisas. Como posso olhar e ter certeza da ‘bondade’ de uma coisa perdida, sem perder a licença de examiná-la de perto (porque ela pode conter também o ‘mau’, no espelho das coisas bem vistas)? Eu quero olhar a coisa inteira”.

Como escritor americano interessado na América, ele não agiu de modo muito diferente de um biólogo diante do mapa de algum DNA incompleto: arregaçou as mangas não costuradas com o “estilo de ouro” anglo-saxão que vinha da Bíblia do Rei Jaime e buscou estágios evolucionários da memória inconsciente, expressados em mitos culturais como o “jardim do Éden”, a “Terra da Promissão” e outros signos de culpa e redenção subjacentes ao tema da busca e da mudança — essas duas obsessões tão medularmente americanas, na saga de conquista de toda uma região ou da simples felicidade doméstica que está em Inverno da nossa desesperança com um tom melancólico do qual eu não o achava capaz, quando li o romance no qual ele tentava “recair” na grandeza.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho