Talvez não seja exagero dizer que o mundo é um eterno recomeço — os personagens mudam, mas o enredo é o mesmo. Que o mundo, enfim, é uma variação de temas primeiros, e muito do que se vê já foi visto antes.
Também na literatura, em seu retrato da vida, encontramos temas que se repetem. Se lermos Machado de Assis, lá estão a hipocrisia, o ciúme, a maldade, a política monstruosa — e cá está, ainda, tudo isso; de Graciliano Ramos, os desmandos ainda nos perseguem, estão aí, aqui. O mesmo se passa com Carneiro Vilela e A emparedada da Rua Nova (1912), cujo universo brasileiro do século 19 não está distante daquele do século 21.
O romance — tão atual que inspirou recentemente a minissérie de TV Amores roubados — conta a história da família Favais. Tudo começa com a investigação da morte de quem acreditam ser um estrangeiro conhecido como Polaco. A identidade do morto é bastante controversa, bem como as estranhas parcerias em torno dessa vingança.
Jaime Favais, sobrinho de comendador respeitado e rico, é um homem ambicioso. Vindo de Portugal, como seu tio, trabalha muito e faz crescer a fortuna deste, torna-se seu sócio e se casa com a prima, filha do comendador. Mas o casamento desanda. Sua esposa e filha estão cada vez mais distantes. A mulher tem um amante, a filha é arrogante, agressiva e destemida.
O crime que dá início à história, cercado por tanto mistério, acaba por se mostrar realmente o centro da trama. Consequência de traições, ele envolve poderosos, policiais e pequenos bandidos. Ninguém está impune. Não há santos, ingênuos ou vítimas. Todos são culpados.
Alfinetadas
A partir do nono capítulo, a narrativa, que até então era de um ritmo um tanto moroso, entrecortado constantemente por manchetes do jornal local, acelera-se e envolve o leitor num clima de expectativa em meio ao suspense gerado.
Na sua linguagem inicial, o livro lembra um romance policial, porém num tom irônico, como de um jornalista político a comentar e criticar a sociedade enquanto relata um fato, um crime, em meio a deboches e alfinetadas sociais. A linguagem policial arrefece um pouco a partir do terceiro capítulo, mas a obra mantém a força descritiva, unindo o físico ao psicológico, tornando os dois parte da construção dos personagens, como podemos ver na descrição sobre o bandido Zarolho:
Coisa notável! Se o primeiro caixeiro o visse neste momento, muito se admiraria, porquanto seus olhos, que na loja eram perfeitos, apresentavam agora um estrabismo convergente extraordinário, o que dava à sua fisionomia já antipática um cunho indiscutível de astúcia e de maldade e a fazia inspirar uma repugnância invencível.
Nesse tom recheado de ironia e crítica à sociedade da época, o narrador segue e nada lhe escapa, muito menos alfinetadas à religião e seus beatos — ainda mais explícitas no sempre presente ponto de exclamação. Segundo Vilela, essas instituições religiosas, como as escolas de freiras, “preparavam uma beata inútil e estúpida, apta apenas para dissertar sobre as problemáticas virtudes do rosário ou para engrolar ladainhas depois de indigestos e perniciosos sermões jesuíticos!”. (Mais à frente, o narrador ainda descreve o caráter da beata como um cretinismo ignorante e humilde.)
Não só tais qualidades da sociedade de então inspiram o autor, no entanto. Segundo diz, seu romance apoia-se numa história verídica, recurso literário muito usado para atrair a atenção do público e da mídia. Apesar disso, A emparedada da Rua Nova foi de tal forma tida como verdade que até hoje muitos creem em sua história.
O que ajuda igualmente nessa crença é a riqueza de detalhes apontada anteriormente. Para que nada lhe escape, o autor construiu um enredo não linear, num vai e volta no tempo, apresentando constantemente flashbacks e flashforwards para aclarar o entendimento do leitor, revelar as bases e motivos de assuntos importantes.
Outro ponto marcante na narrativa é a “perseguição da consciência”. Tanto mulheres adúlteras quanto um senhor mandante de um crime são assombrados pelo medo da descoberta de seus segredos (exceto os criminosos de profissão, que a estes nada pesa). Cada exclamação lhes faz tremer, como se houvessem sido expostos — o que não impede que continuem no caminho da falta e cometam outros crimes. E destes, o mais bárbaro é o que supostamente sofreu a moça emparedada — o crime que dá nome ao romance, descrito em detalhes angustiantes —: emparedada viva e grávida, segundo relato do pedreiro que fora obrigado a construir sua parede-túmulo.
Caráter atual
Apesar de todos esses elementos, de todos os crimes e das investigações policiais, não consideraria este um romance policial. O corpo do livro envolve mais que isso. Há a exposição da sociedade recifense e brasileira da época, seus costumes; o trato com a mulher, vítima do machismo e da imposta subserviência ao homem; a ambição dos poderosos que mandam e desmandam à custa de seus títulos; a prestação de serviços delituosos dos menos favorecidos — bandidos, prostitutas e outros miseráveis que buscam na parceria criminosa com senhores ricos um lugar ao sol.
Assim, nesse quadro, o mundo pregado por Carneiro Vilela é de pouca ou nenhuma beleza. Quase todos os personagens — salvo talvez o tio de Jaime Favais, o comendador Antônio Braga — são de caráter bastante duvidoso. Na família Favais não são dignos de louvor nem pai, mãe ou filha, com sua dose de arrogância e maldade, bem como de desrespeito aos preceitos da moral e da honestidade.
Porém, não obstante todo o mal, Jaime Favais sai impune, e o romance se encerra com uma sentença do narrador sobre o fato: “Ainda hoje existe esse miserável e, não há muito tempo, figura o seu verdadeiro nome entre os membros mais proeminentes da Sociedade Católica. Acabou justamente onde devia acabar”.
Por fim, voltando ao começo deste texto, vemos como o romance de Vilela nos é familiar, ainda nos dias de hoje.