O livro de que me ocupo nesta coluna permaneceu tão silencioso e intrigante quanto o personagem que examina: Bartleby — Um espelho possível. O que poderia parecer natural, não o é de forma alguma. A crítica brasileira tem o hábito de silenciar livros e autores que não estejam na mídia e, por esta razão, perde a oportunidade de revelar novos nomes, ainda promissores, é claro, que estão no nível dos melhores. É o caso deste livro publicado no Recife e que foi jogado no limbo por um desses silêncios constrangedores. Paciência, assim é que se vive no Brasil. E, sem dúvida, assim é que vive a literatura brasileira.
Bartleby — Um espelho possível nasceu de uma ideia brilhante da escritora Eleonora Castelar, logo aprovada por outras colegas de ofício. Que ideia? Homenagear o grande escritor Melville com um livro em que várias autoras — ainda que não bafejadas pela fama e pelo sucesso — examinassem a novela Bartleby, o escrivão em vários pontos de vista, a partir deste possível espelho idealizado pela autora cearense. Depois de várias discussões, os pontos de vista foram distribuídos e todas começaram a examinar a novela pelo enredo, pelo personagem, pela montagem, de forma a examinar todas as técnicas que levaram Melville a compor uma novela tão aparentemente simples, mas complexa na sua leitura. Tenho para mim, contudo, que imensa complexidade de Bartleby nasce do fato de não existir um conflito interior — como se dizia antigamente — ou psicológico.
O personagem é apresentado e desenvolvido por uma única ideia que se repete até a exaustão — a frase “eu preferiria não”, com suas variações. É uma prerrogativa intrigante e inquietante, sem deixar espaço para esclarecimento. E isso basta. É suficiente. Se Melville resolvesse investigar o personagem e assim apresentasse o seu conflito, nada restaria ao leitor ou ao estudioso. Tudo estaria resolvido. Tudo estaria solucionado. Ainda que fosse trabalhado um manancial de inquietações. Neste sentido, revela-se a grande técnica literária: o bom autor não deve nunca esclarecer os fatos, simplesmente deixa que eles se apresentem e se resolvam.
A partir desta inquietação, as escritoras entraram no caminho do estudo e, no mínimo, chegaram a definições bem claras, que exigem o nosso exame. O livro tem também a apresentação de Rejane Gonçalves, outra escritora de pulso forte e belo, sem esquecer de Rejane Pasqual, Jacira Barros, Telma Brilhante, Cici Araújo, Enaide Vidal, Ivenilde Gusmão, Helena Ferraz, contando também com a contribuição de Heitor Brito, Heleno Melo, Geraldo Mendes Filho e Braz Pereira.
Trata-se, como se percebe, de um livro sofisticado, embora apresentado de forma simples, como deve ser mesmo toda a atividade literária, sobretudo no campo da criação. Embora não seja necessariamente um romance, uma novela ou um conto, a obra justifica, por exemplo, o trabalho de uma oficina literária, onde o estudioso aprende a ler um texto criativo e exercita todas as suas variantes. Talvez tenha ocorrido o silêncio em torno do livro por não se tratar de um estudo acadêmico, com os naturais rigores de uma dissertação ou de uma tese, por exemplo, com os louvores que tudo isso exige.
O que inquieta, todavia, é que um livro deste seja jogado no limbo, sem sequer o necessário registro, que justificaria toda a atual grandeza da literatura pernambucana, embora a literatura seja hoje o primo pobre da “mídia cultural”. O que importa, sobretudo, é que o livro está escrito, escrito e lançado, com a vantagem de revelar grandes nomes para o nosso universo literário. Uma ousadia, sem dúvida, que merece e pede o nosso reconhecimento ou o nosso louvor.
NOTA
O texto Tão inquietante e silencioso quanto Bartleby foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco, de Recife (PE).