No limite do trágico

Entrevista com Evando Nascimento, autor de "Cantos profanos"
Retrato de Evando Nascimento, Escritor Fotógrafo: Aline Massuca/Divulgação
01/10/2014

O rigor e o risco guiam a produção ficcional de Evando Nascimento. Retrato desnatural, sua estreia em 2008, apresentava um autor inquieto e preocupado com as formas narrativas, sempre jogando com os gêneros literários, ora distorcendo-os, ora emulando-os, ora transgredindo-os. Evando é um autor inquieto. “Meus textos são reescritos ao infinito. Estou sempre experimentando linguagens, perspectivas e modos de enunciação. Me sinto de fato um escritor-pesquisador experimental”, afirma.

Após Retrato, publicou Cantos do mundo (finalista do prêmio Portugal Telecom de 2012). Agora, estreia no selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, com Cantos profanos, em cujo centro orbitam Deus e suas consequências.

Nesta longa entrevista concedida por e-mail, Evando Nascimento fala de seu início como leitor em Camacã, no interior da Bahia, onde nasceu em 1960, de como constrói sua ficção, das experimentações da linguagem, do meio literário e, em especial, de sua paixão pela leitura e pelo saber.

• Na abertura de Cantos profanos, lê-se que o leitor inventa o livro tanto quanto o livro inventa seus leitores. Depois de publicado o livro, o autor sai de cena? Depois de publicado, o autor é um leitor como outro qualquer?
Esse é sem dúvida um convite para que o leitor invente seu próprio livro, a partir da obra que tem em mãos. Isso quer dizer que o livro não está pronto e só será concluído no ato da leitura. O fato de se tratar de histórias curtas, relativamente independentes, facilita a intervenção do leitor, sem o qual a obra ainda não existe de todo. Mas o contrário também é verdade: é legítimo imaginar que a obra “inventa” e forma seus leitores, aliás, isso é essencial a seu êxito literário. Essa dupla invenção, todavia, nunca tem fim: a cada vez que o leitor acessa a obra, esta se reinventa, e a cada vez que um novo leitor (comum ou especializado) surge no horizonte, também significa que a obra ajudou a formar alguém. Em suma, os leitores completam e formatam os livros, tanto quanto são por eles formatados. Não diria que o autor saia totalmente de cena, diria que se torna apenas mais um dos elementos da ficção. Não o mais importante, mas sua voz permanece fantasmagoricamente ali: é possível reconhecê-lo em algumas intervenções do narrador ou de algum personagem. Por fim, ele pode aparecer com seu próprio nome no meio da história, como o fez algumas vezes Borges. E hoje existe a infelizmente malfadada autoficção, um dispositivo ficcional em princípio inteligente, mas que se banalizou até a náusea. Nela, o autor supostamente se encontra onipresente. Uma vez publicado o livro, me torno mais um leitor, sem nenhum status especial a não ser o dos direitos autorais. Só me acontece de reler um texto meu em livro quando ouço ou leio o comentário de alguém. Aí fico curioso para ver o que a leitora ou o leitor viu, e sou guiado por essa lente poderosa que são os olhos dos outros. Qualquer opinião que eu próprio emita sobre meus textos tem que ser tomada nessa dimensão do leitor comum, não posso e não quero ter autoridade absoluta sobre o que escrevi.

• Seus contos apresentam epígrafes com muita frequência. Como a experiência de leitor o levou à atividade de escritor? Ou ainda: escrever é outra maneira de ler?
Me perguntaram recentemente se existiria uma poética da epígrafe em meus textos. Penso que sim, mas isso ocorreu de forma intuitiva, não calculada. Desde o primeiro livro de ficção, Retrato desnatural, passei a colocar versos e frases de outros autores com que tenho maior ou menor afinidade. Algumas vezes, o texto citado inspirou ou foi um dos “gatilhos” daquilo que inventei. Outras vezes, apesar de não estarem na origem, os textos da outra ou do outro dizem coisas em total afinidade com o que faço. Montar epígrafe deve ser um modo de tecer afinidades eletivas, nunca um gesto gratuito. Por vezes, as falas dizem exatamente o que penso, mas por vezes são o oposto, como é o caso da citação do fascistoide ex-líder sérvio Radovan Karadzic, que diz na epígrafe de Tentação dos Santos, de Cantos profanos, o contrário de meus valores pessoais, mas em total consonância com os do terrível narrador. Leitura e escrita na prática são inseparáveis: desde que se aprende a ler se aprende a escrever, e vice-versa. Aprendi a ler muito cedo, pois era o caçula de três irmãos, todos liam e senti necessidade premente de também poder ler. Foi jubiloso e assustador o dia em que fui flagrado por minha mãe lendo! Era como se estivesse praticando um ato obsceno, mas ela ficou muito orgulhosa… Escrever veio junto e, como líamos de tudo, rapidamente senti o desejo de também escrever. Até hoje sou muito invejoso, digo isso em mais de um lugar no Retrato desnatural. Escrever nasce de um ato de inveja: o indivíduo acha aquilo que leu tão belo e denso que não resiste e quer também escrever. Esse “eu também quero”, que é tão infantil e com conotações eróticas, me move em tudo o que escrevo. Estou sempre invejando alguém, vivo ou morto, daí que sempre esteja escrevendo, embora só publique uma fração do que invento. Porque não se pode publicar qualquer coisa. Há textos que achamos maravilhosos, passado algum tempo descobrimos que não são tão maravilhosos e que merecem ser reescritos, ou talvez ficar para sempre inéditos, ao menos enquanto estou vivo. Seja como for, meus textos são reescritos ao infinito. Costumo dizer que, se me deixasse levar, poderia reescrever um único e mesmo texto pelo resto dos tempos. Por tudo isso, a resposta à segunda parte da pergunta só pode ser sim, escrever é um modo de continuar lendo e relendo os textos que li ao longo da vida. Direta e indiretamente eles reaparecem em tudo o que escrevo, e não só nas epígrafes. Meus textos preferidos estão em toda parte de minha literatura, basta ler com atenção. Quando escrevo, na verdade os estou reescrevendo, mas sempre inserindo algo de meu. Esse pequeno algo de meu é que faz a diferença de minha ficção, indo muito além do plágio ou do mero pastiche.

• Como foi o seu contato inicial com a leitura? O que buscava neste início como leitor?
O contato foi quase espontâneo, mais por uma necessidade de não ficar sozinho. Lá em casa lia-se muito e todo tipo de publicação, quase não havia censura. Meus pais tinham pouquíssima cultura, mas, talvez por isso mesmo, sempre nos estimularam a ler. Fui uma criança e um adolescente solitário, não frequentava muito aqueles que mais tarde se tornariam grandes amigos, a leitura era assim um modo de me conectar com o mundo. Vivi até os catorze anos numa minúscula cidade do interior da Bahia, na região cacau, Camacã. Além dos livros e revistas em casa, na escola ou de amigos, costumava também encomendar volumes pelo serviço de reembolso postal. Creio que desde o início buscava me divertir com a leitura, que até hoje é meu passatempo favorito, ao lado da escrita. Com isso, queria também me instruir. Há um lado meu “fáustico” que perdura até hoje. Tenho um desejo desmesurado de saber, no limite do trágico, felizmente sem vivenciar ao menos até agora a tragédia do Fausto, de Goethe. Muita coisa que li foi por curiosidade, para ver aonde aquilo levaria. Agora sei que nenhum humano, nenhum vivente, esgota o horizonte do saber, pois esse horizonte não para de ser ultrapassado. Alguns cientistas falam de multiversos, que é uma expressão deslumbrante: se não conseguimos esgotar o universo em que vivemos, longe disso, como poderemos jamais dar conta de outros? Apesar dessa limitação, ou por causa dela mesma, amo o saber, de forma crítica e apaixonada. Por fim, a leitura, sobretudo de ficção, sempre me emocionou, tendo a me identificar passionalmente com as dores e alegrias dos personagens. Gosto muito desse lado quase ingênuo da leitura, embora valorize também a desidentificação e o distanciamento. Forte proximidade e grande distância, eis o ritmo binário de minhas leituras.

• A poesia, em especial a de Drummond, parece ser fundamental em sua trajetória de leitor e escritor. Qual o lugar da poesia na sua vida cotidiana?
Diria que é grande. Tenho um bom número de obras completas de poetas na estante e procuro ler e reler com frequência. Não fetichizo nenhum gênero e tendo a fazer uma literatura que qualifiquei como “transgênero”, mas isso nunca significou negar as regras de alguns gêneros. Para misturar como misturo, é preciso bem conhecer os gêneros de partida, sempre correndo o risco de não dar certo. O texto poético trabalha com imagens inusuais, explora a sonoridade das palavras e não tem necessariamente uma lógica linear. Para mim, a linguagem poética é essencialmente elíptica, embora nem todo poema seja elíptico. Amo a expressão “elipses mentais”, que aparece num dos poemas mais famosos de Bandeira, sobre o Beco. Procuro trazer tudo isso para o que escrevo, seja conto, poesia ou ensaio. Deixo tanto quanto possível meus textos se impregnarem de linguagem poética, tradicional ou vanguardista, e os leitores reconhecem isso.

Que tipo de leitor lhe parece ideal?
Aquele que me lê com atenção. Esse é um traço essencial do bom leitor, o interesse e a atenção pelo texto do outro. O leitor pode até não gostar do que faço, e imagino que muitos talvez não gostem. Mas não se pode deixar de gostar sem ter lido e até relido com o máximo de cuidado. Porque são horas de dedicação que não podem ser jogadas fora por uma opinião apressada. Não privilegio o leitor especializado, com formação universitária. Tenho tido todo tipo de resposta sobre meus textos, muitas vezes a do não especialista consegue ser tão ou mais arguta do que a do leitor instrumentalizado. O leitor comum tem uma sensibilidade de quem lê aquilo de modo quase espontâneo, muitas vezes motivado apenas por uma resenha de jornal, por recomendação de um amigo ou por ter visto o volume na livraria. Já o leitor especialista vem munido de todo um instrumental, que, quando bem utilizado, rende interpretações magníficas. Nesse sentido, tive excelentes leitores, que publicaram textos argutíssimos em jornais e também em periódicos acadêmicos.

Retrato de Evando Nascimento, Escritor Fotógrafo: Aline Massuca/Divulgação

• A cada conto de Cantos profanos, assim como a cada livro seu, as formas narrativas se modificam consideravelmente — desde a sintaxe das frases até a voz do narrador. É uma tentativa de “cortar o fio, […] interrompendo a intriga arcaica”, como se lê em O banquete?
Penso que sim. Na verdade, são os personagens e as situações que impõem esse ou aquele tipo de linguagem. Em geral, vem uma frase ou todo um parágrafo, que desenvolvo em seguida. Todavia, seja qual for o resultado da escrita, tudo parte de uma necessidade de experimentação. Estou sempre experimentando linguagens, perspectivas e modos de enunciação. Me sinto de fato um escritor-pesquisador experimental, se bom ou ruim não cabe a mim dizer, essa avaliação só pode vir do outro. Qualquer excesso de satisfação no ato de inventar é uma armadilha para o escritor, jovem ou maduro. Tenho de fato a impressão de que cada texto que invento nunca existiu antes, não daquela forma. Daí que nunca parto de uma fórmula. Mesmo o Cantos do mundo e o Cantos profanos, que guardam diversas semelhanças, a começar pelos Cantos no título, são livros muito distintos! Evidentemente é impossível “cortar o fio” o tempo todo, há continuidades e desdobramentos também. Continuo ou tento continuar o trabalho de escritores e escritoras que vieram antes de mim, os quais admiro profundamente. Como também dou continuidade ao que chamo de meu pró-jeto, as coisas que lanço para frente, sem saber aonde vão dar…

• Jacques Derrida (1930-2004), filósofo franco-argelino, foi antes de tudo um grande escritor, e dedicou parte de sua obra a pensar a literatura. Em que medida uma obra filosófica como a de Derrida produz efeitos para a literatura?
Sua pergunta se deve ao fato de ser considerado um leitor bastante reconhecido de Derrida, tendo sido seu aluno em Paris. Escrevi a tese Derrida e a literatura, que está indo para a terceira edição, coisa rara para um estudo universitário. Sem dúvida, ele foi antes de mais nada um grande escritor. O fato é que, desde os gregos pelo menos, inventores do discurso chamado de “filosofia” (traduzível como amor ao saber), literatura e filosofia sempre se relacionaram. Isso ocorreu de modo às vezes harmonioso, como no caso dos chamados pré-socráticos, às vezes conflituoso, como em Platão. Derrida era um apaixonado pelos dois tipos de discurso. Com Derrida, o discurso literário é elevado à categoria de pensamento. Ele não é o único a fazê-lo, mas o fez sem nenhuma hierarquia entre literatura e filosofia. Diria, ao contrário, que, para algumas questões, a literatura propõe formulações mais contundentes. O proveito que um escritor pode fazer desse tipo de pensamento desconstrutor é imenso, sem cair em “aplicação” de conceitos. Os grandes escritores sempre se beneficiaram da filosofia, explicitamente ou não.

• No conto Terra à vista, de Cantos profanos, lê-se “Narro para me nutrir de minha história e da dos outros, tentando me apossar de meu passado, porventura da História. Em vão”. De que maneira a literatura interfere na realidade? Ou na construção do sujeito?
É preciso lembrar o contexto dessa frase: trata-se do narrador que é um dos dois últimos sobreviventes da colonização em Marte, no ano de 2150. Ou seja, um solitário absoluto que vê a Terra a distância, sem jamais ter tocado os pés nela, pois nasceu em solo marciano. Há inúmeras formas de a literatura interferir na realidade, pois ela faz parte dessa realidade. Seu estatuto especial é não se apresentar como realidade pura e simples, mas como ficção. Porém, enquanto ficção, ela tem efeitos sobre o real, na medida em que faz pensar, deleita, comove e pode levar a agir. Esses efeitos são incontroláveis, o mesmo texto pode provocar reações distintas nas pessoas, mas são bastante reais e não ficam presos apenas à esfera da imaginação. O conto citado, Terra à vista, procura ser mais do que puro entretenimento. Poderia ser somente mais uma ficção científica inspirada no filme Gravidade e no projeto Mars One para colonizar Marte. No entanto, várias pessoas já me disseram o quanto se impressionaram com essa melancólica distopia. Não sou melancólico nem pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas não posso deixar de escrever acerca de fatores que me incomodam no mundo atual, como a hegemonia das grandes potências, que só atuam em seu próprio interesse e não no da humanidade como um todo ou no da vida. Escrever uma distopia futura foi um modo de desconstruir com toda liberdade a geopolítica atual. É uma contribuição minúscula, mas é a que desejei dar. Se ela tocar outros leitores, então a intervenção que busco se terá completado. Quanto ao “sujeito”, não é uma palavra que me interesse mais, por “n” razões que não posso resumir aqui. Utilizaria o termo mais neutro indivíduo. Sim, a literatura interfere na formação e na ação do indivíduo, como, aliás, declarei no início. Isso pode ocorrer de forma positiva, mas também de forma negativa, tal como nos exemplos trágicos e bastante conhecidos de Dom Quixote e de Madame Bovary, dois grandes leitores, influenciados pelo que liam, mas que acabaram muito mal. Já a leitora de Felicidade clandestina, conto de Clarice, tem um final bem mais feliz.

• Concorda com a leitura de que o universo pop é muito importante em sua ficção, embora nem sempre esse dado seja percebido?
Realmente, poucos leitores perceberam isso ou, antes, poucos manifestaram ter percebido. Decerto não faço literatura pop, o que implicaria um tipo específico de linguagem. Nunca tive esse desejo. Mas em minha ficção dialogo bastante com o vastíssimo universo pop. Desde criança, ouvia todo tipo de música lá em casa, em especial os tropicalistas. Caetano e Gal estavam entre meus primeiros ídolos, porque uma irmã sete anos mais velha adquiria seus discos e eu adorava. Esse é o tipo de escuta que abre as portas de todas as percepções, pois uma das marcas da fabulosa arte de Caetano é misturar tudo e finalmente fazer uma coisa que é só dele. Musicalmente, me formei ouvindo coisas muito distintas como os Beatles e os Stones, Dylan, muito rock em geral e a chamada MPB. Ainda adolescente, já ouvia muito a chamada música erudita, designação cheia de equívocos. Para mim, erudição é uma combinação de diversos elementos e não a predominância de um único tipo. As referências ao pop, como tudo o que faço, são mais ou menos conscientes. Às vezes eu mesmo me surpreendo ao reescrever um texto e “ouvir” trechos de canções do universo pop-rock. O contato com as obras de Warhol e de Lichtenstein, mas também com os dadaístas (por volta dos catorze anos, na escola), me deu uma imensa liberdade: era possível fazer arte com Coca-Cola e com histórias em quadrinhos! E eu era um grande consumidor destas últimas, o que nunca me impediu de ler romances densos e poesia de altíssimo nível. Até hoje sou assim, ouço e vejo o que quero, sem nenhum tipo de elitismo, mas faço minhas escolhas. Do concerto erudito ao samba, tudo pode ser referido, a partir de critérios que são sempre estéticos.

• As artes plásticas constituem um fascínio que atravessa muitos de seus textos. Qual a importância das artes plásticas para a sua literatura?
Fascínio é realmente a palavra adequada, e isso se manifesta sobretudo no Retrato desnatural, mas comparece também com intensidade nos outros dois. Retrato pode ser lido como um diálogo cerrado com o universo das artes, passando pela autoficção ou autobiografia e pelos mais diversos gêneros. Quando criança, adorava desenhar, cheguei a inventar uma escolinha na qual dava aula de desenho para os primos mais novos… Passei a adolescência lendo, escrevendo e desenhando. Fazia inclusive histórias em quadrinhos, inicialmente com duas amigas de infância, depois sozinho. Por volta dos quinze anos, comprei um manual de desenho e passei a investir fundo nas técnicas disponíveis. Os amigos e a família adoraram. Não eram obras refinadas, mas tinham alguma qualidade. Quando fiz o vestibular, optei pelas Letras, e isso progressivamente me afastou do desenho e da pintura. Mas o gosto ficou. Também gosto de ler sobre arte e acompanho tanto quanto possível movimentos e artistas. Trazer as artes para minha escrita deve ser um modo de me manter ligado ao garoto que fui e que sonhava com se tornar pintor, tanto quanto escritor. A grande cultura artística que desenvolvi me ajuda decerto a compor visualmente os textos. Tenho inclusive um projeto gráfico que gostaria de realizar no próximo livro, provavelmente em parceria com um artista plástico ou designer. Minha escrita tende a isso, como um desejo imperativo. Como também desejo retomar em breve o desenho, que nunca mais exercitei.

• Hélio Oiticica é uma presença muito forte em seus textos. De que modo o senhor procura dialogar com a obra dele?
Desde que tive contato com a obra de Hélio Oiticica, fiquei impressionado por sua grande liberdade inventiva. Aliás, esse é um traço comum aos artistas que admiro, a multiplicidade, tal como a encontro em Clarice, Caetano, Duchamp, Bach, Picasso e tantos outros. Não me interessam muito os artistas que descobrem um estilo e o repetem ao infinito, sem acrescentar nada de novo até o final da vida. Era essa, aliás, a bronca de Duchamp com os pintores, o fato de descobrirem e repetirem o mesmíssimo estilo, por isso ele abandonou a pintura, que no entanto chegou a realizar primorosamente. E Duchamp foi uma das grandes referências de Hélio. Além da liberdade inventiva, Oiticica e sua amiga Lygia Clark, com recursos distintos porém convergentes, passaram a exigir a participação do espectador para que a obra existisse de fato. Era o que Hélio chamava de participador. Na passagem da década de 1950 para a de 60, o Brasil dispõe de dois artistas altamente inventivos que vão abrir para aquilo que mais tarde se tornará uma necessidade óbvia: a inclusão do espectador na obra de arte. Muito cedo, esses dois nomes iluminaram minha visão estética do mundo, mostrando que uma arte participativa (não necessariamente interativa, que é uma característica da cultura digital) era fundamental para uma abertura das artes.

• O conceito de emulação parece fundamental para seu projeto estético. Como o senhor o atualiza?
Com efeito, trata-se de atualizar um antigo conceito. Durante muitos séculos, duas noções nortearam o que hoje chamaríamos de produção artística ocidental: os termos correlatos imitatio e emulatio. Não tenho como teorizar aqui sobre isso, nem esse é meu objetivo quando recorro ao que chamei nos Cantos profanos de estética da emulação. Gosto de reinstrumentalizar em minha ficção essa antiga noção, mas sem torná-la um fetiche, apenas como um dado a mais do jogo ficcional. Entre 2004 e 2007, quando escrevi os textos que compõem Retrato desnatural, me dei conta de quanto o termo emulação era rico e que valia a pena reatualizá-lo. O que me agradou de imediato foi a ideia de rivalidade: emular é fazer escolhas de escritores e artistas com quem dialogar, mas jamais de modo servil. É uma espécie de desafio permanente. Quando dialogo com Picasso, Duras, Oiticica, Godard e Clarice, por mais pretensioso que pareça, procuro ir além do que fizeram ou pensaram. Claro, qual o interesse de repetir o que já foi feito? Nenhum. Tampouco faz sentido a reverência paralisante. Em arte, em literatura, hoje, a única regra que me importa é inventar a partir do que outros e outras realizaram, cruzando com minhas experiências pessoais. Felizmente tenho uma vida biograficamente rica, o que me permite ir além do jogo de citações… Como disse, emular é apenas um dos componentes do jogo, há diversos outros de mesma importância. A estética da emulação é um espaço de total liberdade, que se faz mirando o que outros e outras nos legaram, para inventar algo de seu.

Retrato de Evando Nascimento, Escritor Fotógrafo: Aline Massuca/Divulgação

“Creio que desde o início buscava me divertir com a leitura, que até hoje é meu passatempo favorito, ao lado da escrita.”

• A antropofagia atravessa tanto sua ficção quanto sua ensaística. Quais são os elos e as diferenças no tratamento do tema no ensaio e na literatura?
Durante muitos anos, Oswald de Andrade foi um de meus heróis culturais, e admiro até hoje muitos de seus escritos e formulações. Mas não se deve ter uma relação petrificada com nenhum artista, por isso não cultuo gurus. O que me encantou na juventude foram dois dos grandes documentos fundadores da modernidade estética brasileira, o Manifesto da poesia Pau-Brasil e o Manifesto antropófago, ambos da década de 1920. O que esses manifestos faziam era tentar entender a cultura brasileira sem complexos. É preciso lembrar que naquele momento predominavam teorias raciais, depreciativas em relação ao caldo cultural brasileiro. No rastro da Semana de Arte Moderna de 1922, Oswald tenta reverter isso, primeiro propondo uma poesia e uma cultura de exportação, tal como o pau-brasil o fora. Só que ele se dá conta que isso era perpetuar a ideia de dependência e exploração colonial em relação à Europa. O Manifesto antropófago, de 1928, foi uma tentativa de radicalizar a reflexão sobre a cultura nacional, sem cair no nacionalismo dogmático de outros grupos. Esse manifesto deveria ser lido na íntegra nos cursos de Segundo Grau, pois diz coisas importantíssimas para entender quem somos, como somos. No coração do manifesto e de diversos outros textos que Oswald escreveu nos anos seguintes, estava a metáfora da antropofagia, em comemoração aos 374 anos da deglutição do Bispo Sardinha. Grosso modo, a cultura brasileira seria essencialmente antropofágica: até hoje seríamos os índios deglutidores da cultura europeia, mas agora de modo afirmativo. Vale lembrar que a antropofagia é um dos piores mitos da tradição ocidental, a ideia de se nutrir de carne humana sendo intolerável para os seres civilizados que logo somos. Oswald tira proveito dessa força negativa e inverte o mito: bom mesmo é devorar o outro, se for um típico branco europeu, tanto melhor. Ora, a partir do final dos anos 1990, comecei a questionar a metáfora devoradora. O principal motivo é que comecei a ter dúvidas sobre se devorar é realmente o melhor modo de se relacionar com a cultura alheia. A metáfora estava tão naturalizada, tanto na Universidade como fora dela, tanto por seus cultuadores quanto por seus detratores, que era preciso revê-la com olhos livres. A mesma liberdade que apreendi desde cedo nos textos de Oswald me fez pôr em questão, de alto a baixo, o paradigma devorador. Mas sem desprezo, ao contrário, como uma atitude de intensa homenagem a um dos pais fundadores de nossa modernidade. Meu questionamento se dá em duas frentes, o ensaio e a ficção. Deixo para meus leitores descobrir as semelhanças e as muitas diferenças entre um e outra. A minha ficção tende a ser uma encenação em que pareço ainda dar crédito à violência antropofágica, mas no fundo invisto com toda ironia. Por enquanto, foram dois contos publicados nos dois Cantos, mas nada impede que escreva um terceiro, embora não tenha nenhuma ideia no momento. Pode ser que já tenha dado minha contribuição às intermináveis discussões antropofágicas e nunca mais venha a tratar do assunto, mas nada posso garantir.

• O senhor se refere à literatura de Clarice Lispector como uma “literatura pensante”. O conceito também é adequado para tratar de sua ficção?
Seria demasiado pretensioso me equiparar à literatura de Clarice. Essa comparação, se houver, cabe aos críticos. Quando forgei essa categoria de “uma literatura pensante”, em meados dos anos 1990, não estava pensando num rótulo classificatório, mas numa experiência singular de leitura. Quem é de fato pensante é o leitor, em seus embates amorosos mas também conflituosos com a obra. Sem o texto literário, nenhuma experiência de pensamento dessa natureza ocorreria, mas sem o leitor não há tampouco como falar em pensamento. Certamente há textos ficcionais e poéticos que propiciam experiências de pensamento mais amplas e mais variadas. Porém, nenhuma dessas experiências pode ocorrer se não houver da parte do leitor uma predisposição a compartilhar e a desdobrar aquilo que lhe é oferecido, como uma dádiva. Tanto quanto a escrita, a leitura precisa ser dadivosa, aberta ao outro e à diferença. No que diz respeito a Clarice, esse dado é óbvio: não há como mergulhar na riqueza de seus textos sem essa capacidade de pensar. E quando digo pensar quero dizer pensar com o corpo todo e não somente como atividade intelectual. Para mim, uma literatura verdadeiramente pensante mobiliza o conjunto das forças corporais, os afetos, as ideias, os sentimentos e as informações biográficas do autor e do leitor. E o maior efeito que consigo imaginar é o surgimento de uma nova obra a partir da leitura. É por isso que não se trata de literatura filosófica, pois esta dialogaria apenas com a filosofia e em geral é muito chata. Com a literatura pensante, a filosofia é apenas mais um dos discursos referidos, embora de modo bastante especial.

• Em certos contos de Cantos profanos transparece o desejo de tornar-se outro; muitas vezes mesmo um animal. A que corresponde esse impulso?
Sinceramente, não sei. Só sei que é algo muito poderoso, ultrapassando minha simples vontade consciente. Por vezes, tenho a impressão de que tudo o que escrevo é para dar conta de uma experiência impossível: o acesso à alteridade. A vida é trágica porque coabito com viventes e coisas que no fundo jamais conhecerei de verdade. Até para mim mesmo, permanecerei um eterno desconhecido, embora a psicanálise possibilite o acesso a diversas coisas importantes. Mas essa “tragédia” pode se transformar em beleza e alegria, se consigo encontrar verdadeiramente esses outros que nos cercam. Um encontro fortuito, em geral ao acaso. Como escritor, tenho o privilégio de tentar entrar na pele de outras pessoas, auscultar suas paixões, sondar seus pensamentos, sem me confundir em princípio com elas. E isso é absolutamente fascinante: pode-se inventar um mundo inexistente, apesar de verossímil, sem se identificar a ele, mas tangenciando sua verdade. Nada tenho a ver com os narradores de muitos dos Cantos, no entanto fui capaz de capturar o que sentiam, como agiriam nessa ou naquela situação, até o desfecho. Creio que é uma forma radical de experimentar a alteridade, colocar-me no lugar do outro e, no limite, tornar-me outro, um animal, uma planta, uma coisa. Com isso, talvez consiga ampliar o próprio conceito de humanidade, o que seria o sonho de todo escritor, ao menos daqueles que admiro. Não sei se consigo minimamente, mas faço tudo para ir além do simples humano da tradição ocidental. Para mim, o verdadeiramente humano se faz em interação permanente com esses outros que nos cercam e que durante milênios maltratamos, lidando com eles como seres inferiores. O conceito atual de humanidade exige o verdadeiro amor de e por esses outros e outras. E amor é uma travessia na pele, no corpo, nas emoções do outro. Invento ficções para poder tornar-me outro, virar algo diferente daquilo que aprendi até hoje, embora provisoriamente. Não sei se consigo, mas, como um personagem de Beckett, direi, ao fim e ao cabo, eu tentei.

• No conto Édipo solar, de Cantos profanos, o narrador afirma “Mas como Deus não existe, fico eu comigo e a boa consciência do filho que soube fazer a mãe feliz”. O senhor acredita que seríamos mais felizes sem Deus?
É uma questão que atravessa todo o volume, a começar pelo título: o que seria um mundo sem Deus ou deuses? Apenas depois de Nietzsche e de tudo o que ocorreu a partir do século 19, conseguimos vislumbrar essa possibilidade. Não sei se será um mundo melhor, mas com certeza será mais livre. Deus é uma figura tirânica e escravizadora de corpos e almas. O Deus judaico-cristão, bem como o muçulmano, exige tudo de seus fiéis, embora se deva lembrar que o Deus do antigo testamento seja infinitamente pior. Todavia, mesmo o Deus cristão sendo essencialmente amor, em nome do cristianismo inúmeros crimes foram cometidos ao longo da história humana. Nenhuma religião é isenta, mas as monoteístas conseguem ser em geral muito mais violentas. Venho de uma família católica não praticante. Fui batizado apenas aos dez anos, porque meus padrinhos moravam em outra cidade. Minha mãe nos ensinou a rezar e a amar a Deus sobre todas as coisas. De vez em quando íamos à missa, mas meu pai raras vezes pôs os pés na igreja, era muito ocupado para isso. De modo que cresci com grande liberdade também nesse plano religioso, até porque minha mãe passou por outros cultos, como o espiritismo e o candomblé. No final da vida, ela declarava não ter mais religião alguma, apenas acreditava em Deus. Se for feito um balanço histórico, os deuses, mas sobretudo o Deus do monoteísmo, fizeram mais mal do que bem à humanidade. É uma promessa de salvação que jamais se cumpre, embora torturas e assassinatos sejam cometidos em Seu nome para que isso aconteça. Não sei se seremos mais felizes se a sombra de Deus desaparecer da face do planeta, mas com certeza seremos mais libertos. Os novos fundamentalismos religiosos procuram claramente fazer a humanidade retroceder ao pior, isso no Irã, em Israel ou mesmo nas chamadas democracias ocidentais. O fundamentalismo é uma poderosa ameaça aos avanços democráticos, como a questão feminina, a situação dos gays, o combate ao racismo, à intolerância, etc., em suma a liberdade de pensamento, o dom mais precioso de todos.

• Na orelha de Retrato desnatural, Antonio Cicero afirma sobre o livro: “longe de cair no ecletismo ou na amorfia típica de grande parte da produção literária contemporânea”. O senhor concorda com essa leitura? O que mais lhe chama a atenção na literatura brasileira atual?
Antonio Cicero escreveu uma orelha dadivosa para o Retrato. Lembro de ter perdido o sono quando recebi o texto. É claro que ele tem muitas razões para enunciar essa frase. Veja que diz “grande parte”, mas não a totalidade. Antes de tudo, lembraria que há nomes consagrados ainda bastante produtivos, tais como Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca e João Gilberto Noll. Quanto às gerações mais recentes, leio literatura brasileira contemporânea de forma muito aleatória, por causa de alguma resenha, por recomendação de algum amigo ou por simples curiosidade. Confesso que pouca coisa me entusiasma, mas já me deparei com bons autores e obras. Há sobretudo uma enorme quantidade de publicações, mais talvez do que de leitores… O grande risco que às vezes percebo é de existirem muitos escritores, sobretudo os novatos, escrevendo parecido. É como se houvesse o desejo de acertar, e isso resulta numa total falta de estilo. Não é preciso ter um estilo extremamente marcado, como o de alguns modernistas, mas é preciso, sim, dispor de uma marca singular. Literatura que qualquer um, com alguma competência, pode fazer me entedia profundamente. Estou em busca do que me surpreende, da voz autoral inaudita, mas raramente a encontro. Deve ser a isso que se refere Antonio Cicero quando fala de ecletismo e amorfia, mais uma vez um tema espinhoso para críticos e teóricos. Como inventor, é tudo o que evito fazer, literatura eclética e amorfa, espero que consiga.

• O senhor estreou na literatura em 2008, com Retrato desnatural, aos 48 anos. Por que da estreia “tardia” na ficção?
Nunca é tarde para publicar. Digo isso porque escrevo desde criança, tendo mesmo feito um romance por volta dos treze, catorze anos. No entanto, creio que me tornei excessivamente crítico e isso fez com que adiasse a publicação de meus escritos. Hoje, com a internet e os diversos modos de divulgação, se tornou praticamente impossível permanecer inédito, pois o garoto que faz um poema ou conto quer ser lido de imediato, a qualidade é secundária. Me envolvi também em muitas pesquisas e projetos universitários, em sua maioria felizmente com êxito. Mas isso foi retardando o projeto de publicar textos literários, que era sempre muito forte e funcionava numa espécie de baixo contínuo. Fui acumulando textos inéditos ao longo dos anos, tendo publicado duas ou três coisinhas apenas. Tenho muito material na gaveta e no computador, mas não sei se algum dia trarei a lume, no momento não sinto desejo algum. Há coisas mais urgentes por realizar. No final dos anos 1990, decidi que precisava publicar algum livro de ficção, não suportava mais a situação de escritor inédito. O ensaísta precisava ceder espaço ao ficcionista sem mais demora. Escrevi um romanção, até certo ponto marcado pela autoficção que então conheci, mas que por isso mesmo jamais foi publicado: era baseado numa história real de amor e, quando acabou, não tive coragem de publicar o livro. Tenho cópias impressas e digitais desse material, quem sabe um dia me animo… Foi apenas em 2004, após uma forte crise de saúde, que comecei a compor os textos de Retrato desnatural, pretensamente também um diário, entre outras coisas. O desafio era escrever um diário que se apresentava simultaneamente como ficção. Em 2007, tinha finalmente concluído o volume do modo como ele se impôs: fragmentário e ao mesmo tempo um texto corrido. Aqueles pedaços de texto contavam uma história, por isso digo em algum lugar que se trata de um romance. O romance de minha vida, dialogando com a autoficção, mas na verdade propondo outra coisa. Devo ter tentado umas três editoras, somente a Luciana Villas-Boas, então responsável pela Record, teve a coragem de assumir um autor inédito e uma obra nada convencional, de mais de trezentas páginas. Sinto que não tenho um projeto específico, meus livros são muito diferentes uns dos outros. São realmente pró-jetos, mensagens altamente confidenciais que vou lançando como garrafas de náufrago para meus leitores. Escrevo para pedir socorro e me sentir menos só. Felizmente tenho tido excelentes respostas de outros solitários — e todos o somos de algum modo, não é mesmo? A única coisa que realmente lamento é publicar num país de analfabetos e semianalfabetos. Mesmo os letrados leem muito pouco, menos do que seria necessário para fortalecer nossa literatura e ampliar nosso conhecimento da realidade. Nada disso, contudo, me paralisa. O prazer da escrita e das leituras por vir é que me impulsiona a continuar.

Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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