A outra voz da liberdade

Obra poética e crítica de OCTAVIO PAZ encontra na liberdade sua base ética, temática e formal
Ilustração: Octavio Paz por Ramon Muniz
01/10/2014

Dois aspectos bastante citados pelos estudiosos de Octavio Paz: a extensão e a diversidade de sua obra. Quem folhear algumas dissertações, teses ou livros sobre o escritor mexicano perceberá que frequentemente trazem aberturas cautelosas, páginas dedicadas a ressalvas ou mesmo a escusas; a maioria reconhece a dificuldade de analisar seu legado, sublinha a necessidade de frustrantes recortes, duvida da possibilidade de conceitos-chaves capazes de interligar e devassar os trabalhos ensaísticos e poéticos pazianos. Qualquer revisão dessa fortuna crítica, no entanto, também verificará que existe sim recorrência de tópicos, conclusões muito similares, impressões totalizadoras aparentadas. Ao lidar com um intelectual que fez das contradições uma ferramenta teórica, seus comentadores também não deixam de fartamente se contradizer.

A história das investigações filosóficas ou científicas prova que não se trata de fenômeno restrito; sempre que nos deparamos com um objeto especialmente vasto e complexo, sentimos despertada essa demanda por lentes que o clarifiquem e deem unidade. Nós ousamos, ainda que reconheçamos quão provável é o fracasso da jornada. Até porque, como se não bastassem as naturais dificuldades de investigação, muitos dos pesquisadores enfrentam também rotinas e políticas acadêmicas improducentes, que inibem projetos mais arriscados e terminam por fomentar a repetição, a multiplicação de exegeses incrementais em redor das teorias já estabelecidas.

Este 2014 de seu centenário não foi diferente. Octavio Paz pode não ter sido pauta tão frequente das mídias culturais e dos eventos acadêmicos quanto seu legado requeria, mas foi veiculado material suficiente para constatarmos aquela semelhança dos textos, sempre baseados em tópicos que se tornaram alicerces da bibliografia especializada: o interesse pelo surrealismo, pela linguagem como fundamento da sociedade, a dialética da solidão, as relações entre tradição e modernidade, poesia e crítica, poesia e magia, poesia e erotismo, etc. São lugares-comuns porque realmente válidos, pontos fundamentais à compreensão da obra paziana — o que não significa dizer que não existam lacunas a serem exploradas, tais qual o papel basilar e norteador da liberdade em sua produção ensaísta e poética.

As abordagens sobre a liberdade em Octavio Paz geralmente têm papel secundário ou subsidiário, ou ainda de protagonismo circunstancial — ligado aos textos políticos do autor, às suas convicções liberais e a seu repúdio a toda forma de autoritarismo. Manuel Durán está entre os poucos comentadores de Paz que ressaltam a liberdade como ideia central e organizadora, ponto de partida e ponto de chegada, ao lado da solidão, da comunhão e do erotismo. Ainda assim, no seu artigo Libertad y erotismo (2002), ele se detém na relação entre erotismo e liberdade.

Tomadas caso a caso, as análises que condicionam ou subestimam o tema da liberdade no legado paziano costumam ser legítimas, e algumas conseguem reflexões valiosas — ainda que incrementais. Consideradas em conjunto, porém, denunciam um campo de reflexão insuficientemente prospectado, com evidente prejuízo para sua fortuna crítica. A demanda libertária do escritor vai muito além, ela está presente em toda sua trajetória, e nos três planos fundamentais: ético, temático e formal.

Qual liberdade?
Em Octavio Paz: o mundo como texto (2006), Sebastião Uchoa Leite nos lembra que, na era moderna, fixou-se a conjunção poesia-crítica, sedimentada pelo romantismo, que pôs em dúvida a validez de conceitos estéticos herdados historicamente. E, se considerarmos as Américas, esses poetas que escrevem crítica constituem a regra, e não a exceção, defende Enrico Mario Santí em El acto de las palavras: estúdios y diálogos com Octavio Paz (Fondo de Cultura Económica, 2006). Octavio Paz é caso exemplar, não só por ter produzido obras relevantes nos dois gêneros, mas também por ter se destacado como um dos mais importantes estudiosos dessa tradição poético-crítica. Das reflexões sobre o tema, ele formulou sua conhecida visão do escritor moderno como introdutor da crítica na sociedade — e mais: “como, por sua vez, a linguagem é uma sociedade, a literatura se converte na crítica da linguagem”, escreve em O ogro filantrópico (Guanabara, 1989).

Encarnando como poucos esse espírito moderno poético-crítico, o pensador mexicano publicou dezenas de livros e centenas de artigos, atuou como um dos mais influentes intelectuais de seu tempo; realizou cursos e conferências, participou de importantes debates socioculturais, envolveu-se em polêmicas políticas, fundou revistas. Trajetória marcada por incessantes mudanças ideológicas e incorporação de influências estéticas — algo que, numa época marcada pelas radicalidades, gerou inevitáveis desconfianças e inimizades.

Nascido pouco antes do início da Primeira Grande Guerra, quando seu país vivia uma das fases mais tensas da chamada “revolução mexicana”, Octavio Paz cresceu em um ambiente tomado por discussões políticas. Seu avô, Irineo, foi jornalista conservador e porfirista; seu pai, Octavio, um advogado detrator de Zapata que, depois, aliou-se ao líder revolucionário. Ou seja, Paz conviveu desde a origem familiar com dialéticas que marcaram o século dos extremos: reformismo x revolução, liberalismo x socialismo.

Fora das paredes ancestrais, o poeta e ensaísta correu fases de esquerdista militante, socialista desencantado e democrata convertido. Ainda que nunca tenha se transformado em conservador, nem professado o liberalismo clássico, tornou-se obstinado defensor da democracia e contundente porta-voz contra todo tipo de autoritarismo. Na conferência realizada quando premiado com o Nobel, em 1990, ele sintetizou sua visão do mercado como um mecanismo eficaz, ainda que sem consciência ou misericórdia. Em O labirinto da solidão, o autor argumenta que mesmo que deixe sem resposta metade das perguntas que os homens se fazem, o liberalismo democrático é o modo de convívio melhor concebido pela filosofia política:

 sejam quais forem as limitações da democracia ocidental (e são muitas e gravíssimas: regime burocrático de partidos, monopólio da informação, corrupção, etc.), sem liberdade de crítica e sem pluralidade de opiniões e grupos não há vida política.

A disposição para autocríticas, diálogos e transformações acompanharam também sua produção poética e seus estudos sobre estética, antropologia, história, política e filosofia. “Octavio Paz, mesmo ao ingressar mais efetivamente no cenário poético mexicano, no final da década de trinta, ou incursionar pelo surrealismo francês durante o período em que viveu em Paris, nunca assumiu postura programática”, explica Maria Esther Maciel em Vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (Experimentos, 1995). Ao contrário dos seus coetâneos, que não costumavam perdoar reposicionamentos ideológicos e inconstâncias teóricas, Octavio Paz assumia suas dúvidas, não temia as mudanças e transformou o diálogo entre contrários em vereda fundamental — barroquizando a linguagem crítica, como afirmou Uchoa Leite (2006), para quem o objeto de Paz

parece às vezes inconsistente, sem peso, aéreo, difícil de ser apreendido pela linguagem lógica da crítica. Paz utiliza então o método de cercar o tema, desdobrá-lo, ramificá-lo em várias direções, detendo-se para lançar novos interrogantes, em suma, de exorcizá-lo pela linguagem poética.

“Tudo é suspensivo e interrogante. Como se a própria escritura quisesse indicar seu caráter hipotético”, completa Sebastião Uchoa Leite. E Maria Esther Maciel, na coletânea A palavra inquieta (Autêntica, 1999), ratifica essa lógica poética “desencadeadora de paradoxos, metáforas, sonoridades, ambiguidades, dúvidas e interrogações”, na qual a obra paziana “se consubstancia, oferecendo-se como um desafio aos discursos de feição racionalista e rompendo com os binarismos redutores no trato de questões literárias, políticas e culturais”.

A vocação reflexiva e dialética de um autor para quem nada estava “definido nem cristalizado”, que preferia “perguntar a afirmar, sugerir a indicar” — como escreve Bella Jozef em sua História da literatura hispano-americana (Editora UFRJ, 2005) — encontrou no ensaio o seu natural meio de expressão. Aquele gênero herético que Adorno contrapôs à prática positivista, por se negar a reduzir seu objeto e optar pela acentuação do fragmentário, recuando “diante da violência do dogma” — como afirma em Notas de literatura I (Ed. 34, 2003) — “que atribuiu dignidade ontológica ao resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido”.

Octavio Paz fez da linguagem poética e do ensaísmo suas ferramentas formais, instrumentos adequados a uma biografia edificada em redor das demandas libertárias. Além dos planos ético e formal, no entanto, qual espaço para liberdade enquanto tema de seus escritos?

Onde liberdade?
A repercussão causada por curvas ideológicas radicais pode nublar análises, como de resto qualquer dado biográfico mais expressivo pode condicionar interpretações em redor. Quando nos referimos a Octavio Paz, não devemos subestimar as consequências de seu afastamento das correntes de esquerda e sua posterior defesa do livre mercado e do liberalismo. A mudança de rota política (com seus naturais desdobramentos na poética e na ensaística do autor) estabeleceu a imagem de uma obra que, com o passar do tempo, tornou-se mais comprometida com a demanda libertária do que com a justiça social. Daí as abordagens sobre a liberdade em Paz restarem atreladas ao fato biográfico, como se fronteira a partir da qual se recortar e pensar este tema em sua produção.

Localizados como eminentemente políticos e posteriores à conversão liberal de Octavio Paz, títulos como El ogro filantrópico (1979), Tiempo nublado (1983) e Pequeña crónica de grandes días (1990) são os objetos preferidos das poucas resenhas ou pesquisas que se dedicam especificamente à demanda libertária do escritor. Contudo, ela está presente desde seus primeiros escritos, sejam jornalísticos, teóricos ou poéticos (vide Libertad bajo palabra, livro que reuniu os poemas escritos até 1949).

Mesmo durante sua fase esquerdista, Paz não pensava estar sacrificando a liberdade em nome de um bem maior (para usar o discurso com o qual seus futuros opositores marxistas mais defenderiam os regimes autoritários de países como URSS, China e Cuba). Recorrendo a paralelo com a filosofia de Rousseau — que ele tanto buscou nas estantes da família —, Octavio Paz acreditava agir contra uma noção de estado nocivo à natureza, contra uma lógica burguesa onde a defesa da propriedade levava à injustiça e à insensibilidade social, sendo necessário lutar por novos pactos fundados na ideia do bem comum.

Resumindo: a liberdade em Octavio Paz não é mero sinônimo de liberalismo, não se faz presente de forma substantiva somente após seu afastamento das ideologias de esquerda, tampouco se restringe aos ensaios políticos. Se o testemunho de todo autoritarismo e violência praticados pelos governos socialistas e comunistas o fez ardoroso defensor da democracia, isso se deu por uma renovada concepção da liberdade, e não por uma recém-descoberta paixão libertária. Sua caminhada é bastante similar a de outros tantos pensadores e escritores, como Castoriádis, Lefort, Gide e Camus.

Décadas depois, já desiludido com os movimentos revolucionários de esquerda, não deixou também de fazer ressalvas ao capitalismo, à devoção irrestrita ao mercado, que, embora “mecanismo eficaz”, “não tem consciência e tampouco misericórdia”, sendo preciso “conceber modelos de desenvolvimento viáveis e menos desumanos, caros e insensatos do que os atuais” (O labirinto da solidão). Ou seja, não se deixou aprisionar pelos dogmatismos colaterais aos programas de livre mercado, porque vale para os países capitalistas a mesma advertência que fizera às ditaduras, da necessidade de manter a consciência crítica: “Não se pode sacrificar o pensamento crítico nas asas do desenvolvimento econômico acelerado, da ideia revolucionária, do prestígio e infalibilidade de um chefe ou de qualquer miragem análoga”, prossegue.

Essas reduções — que pontuam a liberdade em Octavio Paz, ao invés de tomá-la como chave para compreensão de seu legado — contribuem para a politização das próprias escolhas dos pesquisadores, além de influenciar o mercado editorial, que prefere se dedicar aos ensaios pazianos sobre poética e modernidade — exceção feita a El laberinto de la soledad (1950), que, apesar de representar fase intermediária, entre a desilusão com os movimentos revolucionários e o rompimento público com as correntes de pensamento de esquerda, está entre os livros mais reeditados.

Qualquer investigação mais atenta ao tópico da liberdade constatará que ele está presente — como base ética e/ou abordagem temática e/ou reflexos no plano formal — nas relações de Octavio Paz com o surrealismo, com o erotismo, com a cultura indiana, com a dialética das identidades pós-coloniais, com a visão mágica da poesia, etc. E não seria absurdo propor que tal presença seja ainda mais contundente (embora menos explícita) nos livros que se tornaram referência para teóricos da literatura: El arco y la lira (1956), Los hijos del limo (1974) e La otra voz (1990).

Sebastião Uchoa Leite (2006) resumiu: para Octavio Paz, “a criação poética é ato de liberdade individual condicionada a um presente histórico”. Ainda que na famosa enumeração de contrários da abertura de O arco e a lira não esteja expressa a dicotomia liberdade x opressão, somente uma poética da liberdade é capaz de abrigar tantos contraditórios, tantas demandas aparentemente inconciliáveis. Na concepção paziana, a palavra inquieta é somente um dos signos em rotação de uma sociedade em que tudo é linguagem; ou melhor, das linguagens que fazem a sociedade.

Liberdade e poesia
Ora, mas o que resta além das suspensões e das interrogações, se até o liberalismo democrático, como modo civilizado de convivência melhor concebido pela filosofia política deixa “sem resposta metade das perguntas que nós, homens, nos fazemos: a fraternidade, a questão da origem e do fim, a dos sentimentos e o valor da existência” (O labirinto da solidão)? O poeta-crítico Octavio Paz nos deixou somente perguntas sem respostas (ainda que frágeis) para essas indagações existenciais?

No livro A outra voz (1993), os textos selecionados pelo mexicano trazem alguma síntese às suas incontáveis jornadas dialéticas, além de oferecer elementos fundamentais à questão aqui suscitada, do lugar da liberdade em sua obra. No capítulo “Poesia, mito, revolução” (transcrição das palavras proferidas na entrega do Prêmio Alexis de Tocqueville), Octavio Paz explica:

Desde minha adolescência escrevo poemas e não parei de escrevê-los. Quis ser poeta e nada mais. Nos meus livros de prosa me propus servir à poesia, justificá-la e defendê-la diante dos outros e de mim mesmo. Logo descobri que a defesa da poesia, menosprezada em nosso século, era inseparável da defesa da liberdade.

Poesia e liberdade: ainda que sujeitas ao contingente, mesmo que condicionadas ao presente histórico, sua eterna convergência se mostra única voz capaz de nos reaproximar da unidade perdida:

O universo é um tecido vivo de afinidades e oposições. Prova vivente da fraternidade universal, cada poema é uma lição prática de harmonia e de concórdia, embora seu tema seja a cólera do herói, a solidão da jovem abandonada ou o naufrágio da consciência na água parada do espelho. A poesia é o antídoto da técnica e do mercado. A isso se reduz o que poderia ser, em nosso tempo e no que chega, a função da poesia. Nada mais? Nada menos.

Octavio Paz
Nasceu em 1914, na Cidade do México, mesmo local onde faleceu em 1998. Foi um dos mais importantes e influentes poetas e ensaístas hispano-americanos, além de tradutor e diplomata. Em parceria com a Fondo de Cultura Económica, a editora Cosac Naify está recolocando sua obra em catálogo no Brasil. Já foram reeditados O arco e a lira (2012), Os filhos do barro (2013) e O labirinto da solidão (2014).
Cristiano Ramos

É escritor, crítico literário, professor e jornalista. Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco. Em 2015, publicou os poemas de Muito antes da meia-noite.

Rascunho