O que é um conto ou um bom texto?

A ideia é possibilitar maior intercâmbio literário entre Brasil e Argentina, reunindo um conjunto de autores que abarca diferentes gerações, que resulta num livro nem sempre homogêneo, é claro, ainda que forte e belo
02/09/2014

A ideia é possibilitar maior intercâmbio literário entre Brasil e Argentina, reunindo um conjunto de autores que abarca diferentes gerações, que resulta num livro nem sempre homogêneo, é claro, ainda que forte e belo. Um livro de contos, mesmo de um único autor, é quase sempre heterogêneo e irregular porque os textos se diferenciam entre si pela tensão, pela intuição, pela técnica e, não raro, pela temática, embora o tema não seja, a rigor, um problema do ficcionista, mesmo quando serve de apoio e, como se diz por aí, de inspiração. Ocorre que, querendo ou não, um autor se identifica melhor com um tema do que com outro. E daí pode surgir uma melhor — ou não — realização. O que sempre importa numa obra de ficção é a forma. O que nem sempre significa frases bem-feitas, objetivas, belas. É muito mais, muito mais mesmo. Uma boa obra de ficção exige não só as frases, mas, acima de tudo, a perfeita construção do personagem, a rigorosa seleção de cenas e a forma como estas cenas são distribuídas num texto. Não basta apenas um bom texto, um bom texto qualquer um pode fazer. Mas a isto deve estar aliada digamos a distribuição das cenas, de forma que o abismo de um instante possa revelar a tragédia de um personagem para, em seguida, possibilitar a sua redenção, até mesmo numa metáfora, num corte, num diálogo, numa frase. Talvez teatrólogos, dramaturgos, diretores, atores e atrizes possam entender melhor isso. Talvez. O profundo conhecimento do teatro de Machado de Assis deu a ele as condições para se transformar no grande romancista que ele é e continuará sendo para sempre. Vejam o exemplo de Dom Casmurro. Começa com uma cena de ironia quando o personagem conhece o poeta do trem e faz o leitor acreditar em algo suave, numa narrativa quieta e, quem sabe, inconsequente. Talvez uma digressão. No capítulo seguinte vem o corte dramático, quando o narrador expõe as verdadeiras razões do drama e introduz o leitor na temática. No terceiro capítulo surge, com traços de inquietação e força, a denúncia que tencionará o leitor, um acorde de metais que anuncia os motivos narrativos.

Neste capítulo 3, mostra seus conhecimentos de teatro quando o narrador cede espaço para que os personagens chamem os personagens para dentro do drama. A princípio José Dias anuncia dona Glória e Bentinho, em seguida dona Glória convoca o mano Cosme. Uns vão chamando os outros e, no final do capítulo, Dona Glória chama Tia Justina. No capítulo 12 — uma das chaves do romance — a mãe chama Capitu e Capitu chama a mãe. O Narrador tradicional é dispensado e é assim a estratégia de Machado, vindas do teatro.

Tudo isso para ilustrar o que chamei de técnicas do autor, através do narrador, para seduzir o leitor, sobretudo o leitor de contos. No livro Contos em trânsito, reunindo escritores argentinos de várias gerações — Abelardo Castillo, Marcalo Cohen, Inés Fernández Moreno, Fogwill, Inés Garland Sylvia, Iparraguirre, Alejandra Laurencich, Cláudia Piñero, Pablo Ramos, Eduardo Sacheri, Manuel Soriano, Héctor Taizón, e Hebe Uhart —, encontramos contos bem escritos, muito bem escritos, mas, na maioria das vezes, sem o toque da montagem da narrativa. Não que seja medíocre, não é disto que falo. Refiro-me àquela qualidade interna que transforma o bom em ótimo, que dá a verdadeira dimensão do humano. Neste livro não faltam textos bons, muito bons. Mas são textos e não contos. O excelente crítico João Cézar de Castro Rocha criou a expressão “produtores de texto” para classificar os escritores contemporâneos que escrevem bem, mas apenas escrevem bem, escrevem muito bem, mas esquecem de ser escritores. Com o que concordo plenamente.

Contos em trânsito levou-me a esta reflexão e a este questionamento que faço reiteradas vezes enquanto leio e que me levam a distinguir os escritores dos bons produtores de texto.

NOTA
O texto O que é um conto ou um bom texto? foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco.

Contos em trânsito – Antologia da narrativa argentina
Vários
Alfaguara
272 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho