F de fake

Novo romance de Antônio Xerxenesky promete o que não consegue cumprir
Antônio Xerxenesky, autor de “F”
01/09/2014

O cinema continua fazendo a cabeça — e a literatura — de Antônio Xerxenesky. Se em Areia nos dentes o western spaghetti de Sergio Leone dava o tom, no mais recente romance do escritor gaúcho é a figura enigmática de Orson Welles que norteia a narrativa.

A obra de Welles permeia toda a história, mas é o último trabalho do diretor americano, F for fake, que serve como ponto de partida para a discussão pretendida pelo livro de Xerxenesky. Ana, a personagem central, é uma jovem que acha sua rotina modorrenta, mas que a partir da morte do pai vê sua vida dar uma guinada radical: no velório, é apresentada a um tio (ex-guerrilheiro) até então desconhecido, vai visitá-lo em Los Angeles, descobre que tem talento para atirar, faz um curso de guerrilha em Cuba (onde aprende a “surpreender um inimigo de surpresa”), passa um período em Paris e vira matadora profissional.

Além de costurar fatos da vida de Ana com referências ao cinema, Xerxenesky põe Welles no centro da trama. A garota, aos 25 anos, em 1985, precisa assassinar o diretor de Cidadão Kane. Tudo isso dito entre uma ou outra citação musical da época: de New Order a Duran Duran.

Na sinopse, F parece quase um roteiro tarantinesco, mas, na prática, patina na tentativa de ser um livro pop. Há um descompasso entre a trama mirabolante e a narrativa, esta em tom de diário de pré-adolescente. Ana é uma garotinha frágil, uma pequeno-burguesa carioca que, de repente, vira a Uma Thurman de Kill Bill. Estaria nessa verossimilhança falha a chave do romance de Xerxenesky?

Mas há sempre uma explicação para validar tudo. Livros como o de Xerxenesky ganharam o estranho epíteto de middlebrow. Palavra nova, conceito antigo. As obras dessa “linhagem”, supostamente, fariam uma fusão entre baixa e alta cultura, embalando lixo cultural em um verniz literário. Bem, a começar pelo fato de Ian Curtis e Duran Duran não serem alta cultura, no caso de Xerxenesky, o conceito não se encaixa. F é apenas um Pynchon mal executado.

Mas o problema do romance não tem nada a ver com as referências que usa, que denotam, inclusive, o bom gosto musical e cinematográfico do narrador. Na verdade, o livro promete o que não consegue cumprir.

F for fake, de Welles, é um exercício de estilo (uma das marcas do cineasta), uma metáfora para falar sobre verdades e mentiras no mundo da criação artística — e uma defesa do cineasta que aos 25 anos realizou o que parte da crítica considera a maior obra-prima do cinema, mas que a partir daí foi envolto em acusações e dúvidas a respeito de seu talento, por inúmeros motivos, que extrapolam os limites desta resenha). Sendo então o romance de Xerxenesky claramente inspirado no filme (e na obra) de Welles, seria natural que, a partir das discussões de F for fake, o livro absorvesse, seja na forma ou no conteúdo, a matéria da qual se inspira. Mas não há nada nesse sentido em F. Apenas “sacadas”, bobas, diga-se de passagem, que relacionam personagens a fatos reais envolvendo algumas estrelas da cultura. A começar por Ana, que quando recebe a ordem para matar Welles, tem a mesma idade, 25 anos, do diretor quando filmou Cidadão Kane. Já a irmã da matadora de aluguel, tem destino igual ao de Ian Curtis, o atormentado cantor do Joy Divison que em 1980 se enforcou no quintal de casa.

Por mais esforço e boa vontade que haja, não dá para saber o que realmente F quer dizer ao leitor, pois não é uma discussão sobre os dilemas da adolescência/juventude, tampouco sobre a mais recente ditadura militar brasileira, tema que o livro esboça de forma rasa. E, muito menos, como já foi dito, um diálogo a respeito das verdades e mentiras na produção artística.

As referências a filmes e livros também soam didáticas e cabotinas. Em certos trechos, o leitor é submetido a explicações enciclopédicas a respeito da história do cinema. Alguns romances ditos “pop” de Nick Hornby e Irvine Welsh são bons não por conta das informações que trazem sobre música, mas porque sabem embalar boas histórias de vida em um cipoal de referências culturais, sem, no entanto, subestimar a inteligência do leitor. E é essa habilidade que falta a F. Xerxenesky parece mais um cinéfilo, ávido por mostrar seu conhecimento, do que um engenhoso escritor. Além disso, Xerxenesky condiciona o melhor de seu romance a um conhecimento prévio do leitor a respeito de outra obra, outro criador e outra linguagem.

A segunda parte do romance, quando Ana vai trabalhar com Welles e planeja a morte do cineasta, é bem melhor. Talvez o romance pudesse se ater só a essa relação, sem a parte fake do início. Não dá para saber se há algo de real nos diálogos em que Welles aparece, mas convencem, apesar do ar professoral de algumas falas. É aí que o romance parece fazer sentindo. Mas já é tarde para salvar o livro, que a essa altura avança na metade.

Xerxenesky estreou, aos 24 anos, com um romance quase infantil sobre caubóis e zumbis (em que os personagens tomavam uísque no saloon). Agora, aos 30, o segundo romance deixa visível o avanço do escritor. Ainda assim, é claramente um autor imaturo, que não domina seu ofício e tem conteúdo limitado. Está no terceiro livro (há uma coletânea de contos entre os dois romances) e é considerado uma promessa da literatura brasileira. Mas, pelo menos até aqui, não demonstrou nada que possa corroborar essa aposta.

F

Antônio Xerxenesky
Rocco
239 págs.
Antônio Xerxenesky
É escritor e tradutor. Nasceu em 1984, em Porto Alegre (RS). Já teve textos publicados em vários jornais e revistas, como The New York Times, Newsweek, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, entre outros. Alguns de seus contos foram traduzidos para a inglês, espanhol e alemão. Seu livro de estreia é Areia nos dentes. Em 2012, foi eleito pela revista britânica Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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