Quem se lembra hoje do Visconde de Taunay — que foi romancista, contista, memorialista, músico, militar, engenheiro e político — talvez não conheça nenhuma de suas obras, no âmbito intelectual, senão a novela Inocência, que conta a história de uma moça do interior de Mato Grosso, obrigada pelo pai a se casar com um rude criador de gado; e que se apaixona por um estudante de farmácia que se faz passar por médico.
Embora nem sempre muito apreciada, Inocência é pelo menos lida, ainda que obrigatoriamente, nas escolas. Uma pena, porque ao menos outro livro mereceria a mesma honra: Histórias brasileiras (que me parece a obra-prima do Taunay ficcionista), reunião de contos onde predomina o tema indígena, cujo tratamento inovador, à época, inverte o de Alencar e o de Gonçalves Dias.
O maior Taunay, contudo, o Taunay imprescindível é o memorialista de A retirada da Laguna, livro escrito originalmente em francês (La retraite de Laguna) e publicado em 1871. É sem dúvida nossa narrativa mais vívida, mais contundente e mais importante sobre a Guerra do Paraguai.
O livro pertence quase ao mesmo gênero de Os sertões, de Euclides da Cunha. São ambos testemunhos de conflitos bélicos, com apenas uma diferença: Euclides foi a Canudos como observador (e escreveu, portanto, uma reportagem); Taunay participou da terrível aventura que relata.
Por essa circunstância, e pela excelência do estilo, A retirada da Laguna deveria ocupar na literatura brasileira lugar idêntico ao do clássico de Euclides. Mas a Guerra do Paraguai, na mentalidade servil das nossas elites, ávidas de sentirem vergonha de si mesmas, é um episódio que só vale lembrar quando o vilão é brasileiro — como se numa guerra pudesse haver inocentes; ou inocências. E a Retirada é a narrativa de uma derrota, onde o inimigo foi o opressor.
Taunay, então tenente do exército, integrou uma coluna que invadiu o Paraguai pelo norte, como parte do plano para tomar o país. O primeiro objetivo era ocupar a fazenda Laguna, propriedade de Solano López. Todavia, os brasileiros vão sem cavalos, víveres e munição suficientes. Incapazes de sustentar a posição, são obrigados a fazer a retirada. Essa é a história que o livro conta.
Sob pressão da cavalaria paraguaia, passando muita fome e enfrentando uma epidemia de cólera (que dizimou mais da metade dos homens), a coluna faz a trajetória anti-heroica, anti-épica; retoma o mito de Orfeu, ou de Sodoma, para mostrar que só sobrevivem os que não olham para trás.
Algumas passagens são assustadoras, como a descrição da travessia dos rios, do abandono dos doentes, da fuga pelo mato (que os paraguaios incendiavam). Também impressiona muito a caracterização de certas personagens, como a de índios terenas e guaicurus, que se juntaram espontaneamente à coluna por se sentirem — acreditem — brasileiros!
A figura que se impõe, contudo, é a do sertanejo José Francisco Lopes, que serviu de guia e foi fundamental para salvar o que restou da expedição. A nobreza e o patriotismo singelo desse homem chegam a comover: foi à guerra para libertar a família, raptada pelos inimigos. Consegue resgatar o filho, mas ambos morrem pouco antes de chegarem ao lugar onde a coluna se poria a salvo. Morrem, assim, como Moisés ao avistar Canaã.
A retirada da Laguna tem inúmeras edições. Recomendo a da Companhia das Letras, organizada por Sérgio Medeiros. Mesmo a R$ 40,00, vale muito a pena.