E se quebrou

“E se quebrou”, conto inédito de Helena Terra
Ilustração: Carolina Vigna
01/09/2014

A Raduan Nassar

Com a mãozinha esquerda, empurra a grade branca pintada há poucos dias. O pai queria um verde escuro. Sujaria menos. Mas a mãe é dona de melhor gosto, portanto, impõe a cor final. Para a menina, o branco parece encardido e lembra a calçada de pedras que Socorro esfrega, ajoelhada, enquanto a tarde se inicia. Há quinze minutos, a menina estava sentada à mesa, as pernas balançando no ar. Com o garfo, comeu o purê de batata e o arroz com feijão; e, com os dedos, um ovo cozido, a batata doce e um tomate. A faca, a carne e a sobremesa, deixou de lado. É preciso lavar os dentes antes de sair. Se fosse a época de passar flúor, estaria em apuros com tanta lentidão. Talvez, fosse melhor perder de uma única vez os de leite. Essa criança vai ter uma boca imensa, o pai comentara na semana em que ela fora rejeitada para o papel de Chapeuzinho Vermelho, e a professora Mirtes a chamara para fazer o de Lobo Mau. Lobo mau parecia ela — grande e feroz — reclamando dos farelos derrubados sobre os guardanapos engomados e sobre o guarda-pó agora metade uniforme, metade capa. Em metade capa tinham também transformado a camisola em que a menina se imaginava princesa. Me perdoe, são ordens da tua mãe, Socorro dissera diante do pedido de, por favor, não faça isso. Me perdoe, não posso te acompanhar, são ordens da tua mãe, Socorro lamentara, vendo a mãozinha esquerda empurrar a grade branca pintada há poucos dias.

Com o pé direito, a menina dobra a esquina. Dali para frente é só andar em linha reta quatro quadras, tendo o cuidado de olhar para os dois lados ao atravessar as ruas, de não falar com estranhos e de não se distrair em frente à loja de brinquedos. Na vitrine está a boneca que mexe os braços e a cabeça, usa avental e tem vassoura, ferro de passar roupa e espanador. Se não fossem as bolitas azuis de vidro e os cabelos loiros e cacheados, a boneca poderia ser filha de Socorro. Se ela própria não fosse a magricela que é, poderia também ser filha de outra mulher que não dormisse tanto e de um pai que trabalhasse menos. No final do almoço, de um ouviu o você sabe que não posso te levar porque preciso descansar a beleza; e, do outro, o você dobra a esquina, caminha quatro quadras e, quando chegar na portaria, diz que é minha filha. A menina fala desde os onze meses e anda desde um ano de idade. E não chora desde que aprendeu a falar e a andar. Chorar é para maricas o pai diz para o irmão quando ele se machuca. Chorar cria rugas ao redor da boca e dos olhos a mãe explica sentada em frente à penteadeira. Espelho de cristal, estojo de cristal, escova de madrepérola: o mundo da mãe é encantado.

De dentro da loja, a vendedora a reconhece. Vem à porta convidá-la para entrar. O Natal está chegando, quer segurar a boneca, pergunta, entortando as sobrancelhas para observar os voos do tecido branco, que a mãozinha esquerda da menina não consegue conter. Ela fez os deveres de casa, passou de ano e está em férias. No ano que vem, ganhará um novo uniforme, por isso, prefere andar com esse descosturado a sacrificar o restante das roupas. Já basta a agressão à camisola favorita. E, além do mais, não está completamente nua. Tem a pele coberta ainda que o irmão aponte o dedo e grite: pelada, pelada, desde o primeiro dia. No primeiro dia, o pai bateu no rosto da mãe quando entrou no quarto e viu a filha torta. Foi um plaft de calar tremores. No segundo dia, ela e a mãe estavam tão silenciosas que nada mais aconteceu. Ou quase. De Socorro, recebeu uma agulha de tricô — é para você se coçar quando esquentar muito — e um saco plástico de lixo cortado ao meio para tomar banho. A menina tenta manter-se limpa. Entra de lado no chuveiro, molha uma perna, a outra, molha o braço esquerdo; de costas, empina o traseiro. Não lava os cabelos. Desconfia vir deles o azedume que está a se espalhar.

E então quer vê-la de perto, a vendedora pergunta outra vez. E a menina sente vontade de dizer sim, os dedos da mão direita se esticam, a boca se abre, o corpo todo se alonga, mas a menina deu sua palavra à Socorro de que por nada no mundo se desviaria do caminho. Na volta, quem sabe, se tudo correr bem, poderá segurá-la e cantarolar uma ciranda cirandinha nem que seja por poucos minutos. Por ora, não deve. Se atrasar, o pai ficará zangado, e a mãe, irritada. E, se os dois se aborrecem, até o cachorro paga. Só de imaginar, o seu peito dói. Doem o peito, as costelas, o ombro, os dedos, a respiração. A respiração cresce como se fosse uma barriga cheia de vermes, parece uma coleção de pernas, braços e choros de bonecas prestes a explodir.

Coff, coff, na ponta dos pés, ela faz em frente ao balcão. Sabe que deve dizer boa tarde, com licença, por favor alguma coisa para ser atendida. Atrás do tampo marrom, vislumbra um homem. Esperava por uma mulher. Secretárias são mulheres. Esse, além de estar no lugar errado, tem um ar estranho. Ele a viu e finge que não. No alto da parede, bem em cima, está o que sangra na cruz, aquele que a professora Mirtes disse que morreu para salvar a todos e que a tudo enxerga. Será?, pensa a menina. Ela o encara. E ele nem pisca. Pregada no assoalho de madeira, tampouco, a menina. Se ninguém a acudir, vai ficar ali para sempre, contraindo os dedos da mãozinha esquerda, enquanto escuta a conversa sobre gessos, serrotes e carne viva que escapa por uma porta semiaberta.

Helena Terra

Nasceu em Vacaria (RS). Cursou a Oficina de Criação Literária de Luiz Antonio de Assis Brasil. Em 2013, publicou o romance A condição indestrutível de ter sido. Organizou, com Luiz Ruffato, a antologia Uns e outros. É coautora da novela Bem que eu gostaria de saber o que é o amor (2020), em parceria com Heitor Schmidt. Acaba de lançar o romance Bonequinha de lixo. Vive em Porto Alegre (RS).

Rascunho