Altair Martins, em Terra avulsa, constrói um personagem que se desdobra em vários outros. Este artifício, apesar de não ser novo na literatura, torna o livro muito interessante. Pedro Vicente é um tradutor que verte livros do espanhol para o português, e um desses livros é Arena viva, de Javier Lucerna. Aqui cabem duas observações. A primeira é sobre Lucerna. Trata-se de um poeta nicaraguense nascido em Somoto, que lutou pela revolução sandinista. A segunda é sobre Arena viva. Como o próprio autor explica em nota, é “um dos raros livros verdadeiramente de memória, Arena viva foi escrito pelo recordar dos outros”. Ao mesmo tempo, este narrador em primeira pessoa, escreve um livro de poemas em parceria com Eudora, uma espécie de funcionária executiva da editora para a qual ele trabalha. A parceria entre ambos consiste na elaboração de um livro onde convivam imagens e poemas. Ele escreve poemas sobre objetos fotografados por Eudora. Os poemas e os objetos também aparecem no romance provocando uma bem-sucedida subversão da narrativa tradicional e o estabelecimento de um gênero misto, que na história da literatura às vezes acaba por deixar a palavra em segundo plano. Mas, em Terra avulsa, isso não ocorre. As fotografias são propositalmente prosaicas; a poesia, no entanto, supera e transcende esse prosaísmo. Tentativas vanguardistas na literatura brasileira não são novidades. Um autor contemporâneo que se saiu bem ao estabelecer uma narrativa até certo ponto experimental é Luiz Ruffato. No final do século 20, ainda encontramos a pena furiosa de Ignácio de Loyola Brandão.
Pedro Vicente, o narrador, é uma pessoa reclusa, comportamento que se radicaliza, sobretudo, depois de sofrer um assalto praticado por uma dupla que vem em uma motocicleta. Roubam-lhe pouco dinheiro. O grande prejuízo, no entanto, é que lhe roubam não apenas os documentos, mas a própria identidade. O ladrão, apelidado de Rato pela vítima devido à semelhança ao Mickey Mouse, não apenas usará o documento do poeta, como também se utilizará de um poema encontrado junto aos objetos que estavam na mochila de Pedro, passando-se pelo autor. Munido de tal arma, conquistará Isabel, a balconista de uma farmácia. A partir desse episódio, narrador e ladrão farão uma viagem pelo universo da literatura.
Além de traduzir o livro de Lucerna, Pedro Vicente, de certa forma, assume a identidade do poeta, constituindo assim mais um duplo. Eis o início do livro: “de vez em quando me ocorre ser Javier Lucerna. Quase sempre, em verdade. Então nasço na Nicarágua, em Somoto, pelas mãos do Dr. Carlos Herrera, e me crio comendo o gallo pinto de minha mãe, Benite Solíz”. Saberemos, então, sobre o nascimento e a vida do poeta nicaraguense, seu despertar para a literatura, para a luta revolucionária e como Arena viva veio a público. Os poemas que Pedro escreve para o livro em parceria com Eudora também são fortemente inspirados em Lucerna. Ao mesmo tempo, a tradução de Arena viva sofre da impregnação da poesia deste tradutor-poeta. Tais fatos provocarão uma discussão entre os dois e o dono da editora.
A contribuição maior de Altair Martins à literatura, com o romance, é a suspensão do tempo cronológico e o estabelecimento de um universo atemporal, suas possibilidades reais e o desenvolvimento deste por intermédio da literatura. Desde o momento em que o narrador sofre o assalto, ele se retira do mundo, veda todas as janelas — até mesmo o sol ele evita — e elimina a possibilidade de contato com o mundo e com o tempo exterior.
Nunca acreditei na linearidade do tempo. No apartamento opaco em que estive, nada do mundo externo — aviões a derrubar torres, um vazamento de óleo na costa do México, o rebaixamento do time de maior torcida —, nada constou naquele meu tempo interno. Lá a história tomou outros rumos, ou a história não existiu.
A literatura acaba por ser o seu alimento, daí a forte presença da poesia, já que esta não exige linearidade cronológica. O tempo de certa forma é recuperado, mas através de uma narrativa paralela: a história, imaginada por Pedro, do homem que o assaltou. O ladrão torna-se demasiadamente humano e, para manter sua conquista amorosa, percebe que tem de enveredar pelo mundo da literatura.
Nesta reclusão de dias e noites, o contato de Pedro Vicente com o mundo exterior se dá apenas aos domingos, quando Eudora aparece para lhe trazer roupas limpas e alguma comida. O narrador transforma seu pequeno apartamento num país imaginário e diz sentir-se estranho a qualquer outra nacionalidade. Eudora, a partir deste momento, começa a se interessar por este ser excêntrico.
Outra referência à literatura é o elogio à hipálage, figura de retórica que se caracteriza pela transferência de sentido; atribui-se a x algo que deveria pertencer a y. O próprio narrador refere-se à hipálage algumas vezes e salienta que neste trânsito entre a metáfora e a metonímia está o estranhamento, por paradoxal que seja, o não lugar é que revela o literário. Portanto, a língua é capaz de nos tornar estrangeiros, mesmo que na aparência falemos o mesmo idioma. Outro fato importante é considerar a opção do autor em escrever um romance cujo principal personagem seja Javier Lucerna. Na verdade, Altair trafega na contramão da ideologia da cultura contemporânea, que é a de recusar utopias revolucionárias. A referência, entretanto, é auspiciosa, sobretudo num mundo sob o controle dos RGs e CPFs, um universo que expõe todos à exacerbação do consumo, tolhendo-nos qualquer esperança utópica e negando outros sentidos para a vida. A referência a movimentos revolucionários, ainda que malogrados, indica a necessidade da existência do sonho e da esperança, mesmo que, no fim, sobreviva apenas (se é lícita a palavra) a poesia.
No final do romance, um obrigatório encontro com o editor traz novamente Pedro Vicente à realidade, já que para se ganhar algum dinheiro fazem-se necessárias algumas formalidades, como a de ter documentos. Ele empreende, então, uma viagem de volta à cidade natal em busca da certidão de nascimento, necessária para obter as segundas vias dos papéis levados pelo ladrão. Lá, porém, mais uma surpresa o aguarda.
Altair Martins é professor de literatura. Portanto, não é de espantar tantas referências a autores clássicos e também a autores do segundo time, fato que não deixa de ser lucrativo para todo tipo de leitor. A busca de novas saídas para o romance atesta a constante angústia de quem não quer sucumbir aos modelos cristalizados pela tradição.