À primeira vista, o leitor desavisado poderia pensar que se trata de um livro de ficção que possui, como tema central, a discussão sobre o emprego, o desemprego, o papel dos dois numa sociedade cada vez mais informal, informatizada, calcada na dispensabilidade do componente humano e em sistemas alternativos de outsourcing, terceirizados, frilas, empreendedores, empresários individuais, ou com alguma carga de ojeriza ao sistema fordista-massificado-emburrecedor que rui a cada máquina computadorizada cuspida em algum ponto do mundo entre a Califórnia e Hong Kong (cuidando-se de andar pelo lado do Atlântico, pelo lado de cima, claro, porque ainda não conseguiram produzir computadores a partir da extensa massa de água salgada do Pacífico, no Havaí, ou nas terras rústicas do continente africano).
Nada disso.
Gonçalo Tavares realizou — queixos ao chão — aquilo que possivelmente todo contista deseja realizar: um livro de contos meio romance, em que cada conto dá um gancho para o conto seguinte, a partir dos personagens. Uma espécie de Babel (e aqui me refiro ao filme do Brad Pitt, também se debruçando sobre a desordem como tema global) onde, na perspectiva geral, poderíamos unir o mundo todo através de acontecimentos entre humanos ou, como no sonho zuckerberguiano, através do seu feixe de contatos próximos e relacionamentos diretos.
Encadeados e em ordem alfabética, temos 25 homens: Aaronson, Ashley, Baumann, Boiman, Camer, Cohen, Diamond, Einhorn, Glasser, Goldberg, Goldstein, Gottlieb, Greenberg Greenfield (notamos uma prevalência/preferência de Gs?), Helsel, Holzberg, Hornick, Horowitz, Indictor, Kashine, Kessler, Klein, Koen, Levy e Matteo, que vão se dando as mãos em situações absolutamente insólitas e totalmente surpreendentes, terminando todo o suspense em Matteo, na letra M (de morte, ou o “M” do próprio nome do autor?), numa espécie de sala de aula literária, onde cada um é chamado pela ordem, esta apenas disfarçando o domínio do caos que rege a vida de cada um dos personagens e, em espelhamento, de nós mesmos, os leitores desavisados.
Entre os diversos personagens, há arquitetos que criam rotundas quadradas (por que, insanamente lembro-me das obras do Rio de Janeiro?), limpadores de lixo, homens com tiques inimagináveis, homens biônicos que insistem em testar a providência fazendo sexo, um prostituto com as costas tatuadas em braille, um colecionador de baratas, homens fugindo de uma epidemia de loucura — um dos contos mais sensacionais do livro —, e assim por diante.
Até que, na última história, Matteo é apresentado e também apresentado o drama de sua vida, terminando-se o conto com a virtual e futura continuidade circular da história, uma vez que é introduzido Nedermeyer, letra N (“n” de não-sei-quantos, ou de fórmulas matemáticas em que o “n” sempre é o número a ser buscado), o mesmo que observa a rotunda quadrada na história de Aaronson.
Acontece que, depois da primeira parte do livro e do desenrolar de suas 25 histórias, Gonçalo inicia a escrita de um ensaio, em posfácio: Notas sobre sua própria obra. Sim, um posfácio prodigioso, genial, absolutamente inédito em livros de contos e, ainda mais, em contos surreais como os narrados em Matteo.
Aí é que veio meu problema, ou nosso, ainda assim um problema de quatro facetas (o quadrado da rotunda de Aaronson — o arquiteto que faz com que os carros, imaginando a redondeza perfeita da rotunda, acidentem-se em suas inusitadas arestas?) e esse problema reside sobretudo na antiga discussão da “mosca azul” e, num segundo estágio, em reflexões literário-interpretativas um pouco mais desconcertantes. Vamos a elas.
Primeiro: será que esse ensaio é realmente um ensaio ou seria mais uma ficção em forma de ensaio? O que o autor diz acerca dos contos é realmente aquilo que o inspirou em cada conto, ou aí também ele ficcionalizou? Não, nunca saberemos. Ainda que Gonçalo jure de joelhos com a mão na Bíblia (e já me divirto quase vendo a cena). Pois todo escritor de ficção, e aqui eu peço vênia ao Pessoa por aumentar a turma a que devemos desconfiança, é deveras um fingidor.
Segundo: será possível que a interpretação de si mesmo seja isenta? Seria essa interpretação um longa-manus, continuidade, manual ou derivação da própria obra? Esse texto serviria para policiar o leitor e mostrar-lhe o que pensar a partir do escrito, assim como profetizado por João Ubaldo em sua última crônica (O correto uso do papel higiênico)? Não teria o autor a tentação de, na sua interpretação sobre si mesmo, ver mais do que o existente, criando uma aura ainda maior sobre a sua própria criação? E, pior, caso posto o texto para fora do livro, seria possível ou razoável a criação de um ensaio-explicativo de si mesmo?
Terceiro: atravessando as duas primeiras questões, e supondo que seja (i) absolutamente verdadeiro e (ii) integralmente isento o ensaio crítico sobre a própria obra, uma vez instaurada no autor essa condição de “intérprete autêntico”, vez que só ele é o único que possui esse direito inerente sobre sua obra, pondo-se acima de qualquer outro intérprete, que apenas suporá — arriscando — e tecerá ilações sobre a obra que não lhe pertence, o que, por exemplo, tenderia a acontecer comigo mesma, caso me aventurasse a tanto, pergunta-se: o que sobraria para os doutos acadêmicos letrados senão esmiuçar, comparar frases (conto à luz do ensaio; interpretação acerca do escrito no próprio ensaio) e interpretar as interpretações do próprio autor? Chegaríamos, então, a uma interpretação ainda mais distante do comum de uma interpretação ordinária, uma vez que leríamos o dito sobre o dito acerca do escrito? (o que vocês, leitores, estariam fazendo exatamente agora). E se vocês, leitores desse meu texto, comentassem em meio a algumas cervejas. Reparem que a coisa fica mais intrincada a cada plano de distância, um disse-me-disse, um telefone-sem-fio literário.
Quarto: finalmente, ao dissecar seus textos, retirando-lhe o glamour, o mistério, exibindo suas origens, seus vestígios, suas entranhas, no bojo do mesmo suporte em que posto o texto, não se estaria perdendo um pouco da beleza e da sedução do que se acabou de ofertar à leitura? Assim, como se uma mulher carregasse consigo para um bar à meia luz, entre decotes e transparências, um daqueles protótipos de resina do aparelho sexual feminino visto em corte longitudinal, exibindo-o ao mesmo tempo em que joga seu charme, cabelos de um lado para o outro? Qual homem ousaria?
No caminho dessa “cartografia da desordem humana”, a leitora que caminha desavisada, após “ler levantando a cabeça” as 25 histórias tecidas com a genialidade do escritor, ganhou grátis (e não é só…) um seminário de literatura, psicologia, filosofia, lógica e retórica avançada, de modo que foi possível sentir um quase-pavor ao folhear as páginas do tal ensaio, enquanto observava a vivissecção do protagonista do voo que acabara de admirar.
Mas há quem goste, se há! Especialmente todos aqueles que curtem “conteúdos especiais” e “extras” no DVD de seu filme predileto, aquela multidão que busca as entrevistas com o autor, com o autor do livro que virou filme, o making of, as cenas cortadas, os debates com o diretor, etc., etc.
Isso, de querer ver um filme, um livro e depois mastigá-lo na memória, deixá-lo lentamente descer para seu estômago e de lá para seu sangue, suas células, até que ele já faça parte de você, isso só acontece com desavisados, gente poeta e meio avoada. Isso é só com quem anda na rua observando o vento, sem olhar para os lados antes de atravessar o sinal.