Victor Segalen: o lateral da busca do outro

Victor Segalen
01/08/2014

Na edição passada, expliquei como foi útil (pelo menos para mim) definir o conceito dos “escritores laterais” — que hoje me interessam muito mais do que os “principais” pisando com as meias de seda do sucesso (?) no tapete vermelho da literatura crepuscular que nos rodeia.

Não pretendo explicar tudo de novo, é claro, mas sim defrontar o primeiro esquivo lateral que trago para exibir sob um pouco de luz, incomodando o seu olhar de míope de saúde tão frágil que ele viria a morrer, de repente, aos 41 anos, vítima de um misterioso “esgotamento” que o levara para a floresta de Huelgoat (o centro mítico do Ciclo do Rei Arthur). Num manhã luminosa, Segalen se deitou debaixo de uma árvore e deu o seu último suspiro no mundo em que havia buscado o Diferente, o Outro, o “Exótico” (se esta palavra ainda pudesse brilhar com o seu significado das manhãs da linguagem).

Esse francês estranho nasceu em Brest, em 1878, e o ano da sua morte foi o posterior ao fim da hecatombe europeia da Primeira Guerra Mundial.

Por que voltou para a França?

Por que não permaneceu na China ou, então, não viajou para o paraíso de felicidade da sua juventude — a Polinésia de Gauguin —, onde havia encontrado, em Taiti, logo ao chegar, os pertences & haveres de Paul levados a leilão como se fossem o lixo de um “pária das ilhas”?…

Foi Segalen quem arrematou, por uns poucos francos berrados com sordidez, o belo quadro Village Breton sous la neige, por muito tempo considerado o “último quadro pintado por PG”. Não foi. Mas isso é outra história.

Voltemos ao lateral Segalen, morto num jardim, com pensamentos fechados na cabeça que pende para um lado (que ninguém enxergava naquela época, e não enxerga, ainda, agora que somos orgulhosos do vazio sobre todas as coisas).

O “lateral” da diferença do “diferente”
Ele escreveu: “O sentimento do ‘diferente’, portanto, não é nem uma adaptação nem a compreensão perfeita de um fora-de-si-mesmo que ligaríamos a nós; é antes, a percepção aguda e imediata de uma incompreensibilidade eterna. Partamos desta confissão de impenetrabilidade. Não nos gabemos de assimilar os costumes, as raças, as nações, os outros; pelo contrário, regozijemo-nos por nunca o podermos fazer, guardando para nós a perdurabilidade do prazer de sentir o Outro, o diferente”.

Porque Victor Segalen havia sido dominado por uma inquietude maior, muito cedo.

Nascido num meio pequeno-burguês devoto e asfixiante, logo busca sair do lugar (e de si mesmo) para viver alternadamente como marinheiro, viajante, poeta, antropólogo, médico, arqueólogo, sinólogo…

Alguns imbecis que apenas ouviram falar dele (os verardos das Franças mal digeridas etc.) poderão perguntar: “É aquele escritor que amava a China?”… — e a platitude de perguntas-chavões assim terá que ser respondida com um “não” sonoro e mais a necessária explicação de que Segalen apenas situou a sua obra-prima (René Leys ou A cidade proibida) no “país dos mandarins” ou outro ecianismo-acaciano qualquer que possa vir à cabeça dos alencares da ocasião.

Não, nem isso. O romance (é um romance?) se passa na cabeça de alguém que, na China, pensa sobre o que seria, realmente, a China antípoda em que os sentidos “não são felizes” (ele está evocando as ilhas — distantes — de luz), mas que lhe podia dar a confirmação de uma atitude estética da qual tivera a primeira intuição ao se deparar com a pintura de Paul Gauguin levada a leilão aos gritos — embora fossem quadros providos de todos os silêncios das cores que gritavam para dentro da alma de um jovem arrebatado de Brest para ir conhecer o outro lado da vida na Oceania, no Extremo Oriente e noutros países visitados pelos Lotis como se fossem lugares de cartolinas pintadas sobre norões, fantasias baratas, poesia gasta, prosa de quinta…

Mas o livro que ele queria realmente escrever, Segalen nunca sequer o iniciou, pegando da caneta ganha do embaixador belga que ele sempre vencia no jogo. A obra se chamaria Essai sur l’exotisme, porém não trataria de nada “exótico” no sentido bafiento da palavra já poluída; seria, sabe?, um livro ainda mais estranho do que o Leys, e trataria, na verdade, de algo que pode ser definido como…

[o contador de palavras do PC acaba de me avisar que já passei das setecentas palavras estipuladas para a coluna]

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho