Certa vez, o poeta Francisco Carvalho me disse, ao ver meu primeiro livro, que, segundo alguém lhe contara, um livro bom deveria parar em pé. O meu não parava, nem o estreito e fino Ondas curtas, de Alcides Villaça, com suas 112 páginas. Contudo, dada a variedade de temas e as abordagens contidas nele, ao término da leitura, parece que lemos muito mais. Podemos ver aí também a noção de Obra aberta de que fala Umberto Eco no livro que leva o mesmo nome. São tantas as interpretações e ligações que podemos fazer na sua leitura que esta se expande além das resumidas páginas.
Separado em cinco partes, os poemas possuem certa diferença em cada uma delas; contudo, nem sempre essa diferença é de fácil percepção. A metalinguagem, a identificação e a sinestesia com o leitor, o mundo contemporâneo e o comum dos dias, com sua natureza, amores, passado e a morte estão todos no livro. E a tudo, conseguiu o poeta dar um novo ar.
Na primeira parte, Câmara de eco, encontramos o eco nas anáforas, nas reverberações dos temas ou cenas apresentadas e na metalinguagem.
Muitos desses versos tratam do poema propriamente, da sua feitura, da sua representatividade no mundo e de suas diversas formas de ser, assim como de seus poetas, caso do poema Esses poetas, onde o autor nos descreve diversos tipos de poetas e suas características, elencados de anáfora em anáfora como vemos nos versos seguintes: “Esse tem mistério, solta e fecha./ Esse faz humor, diz que desdiz.// […] Esse faz história, borda pra fora./ […] Esse é noctívago, retoca olheiras./ […] Esse é dramático, cospe a própria máscara./ Esse é profundo, nunca vem à tona”.
Noutro poema, Dona crítica, uma palavra aos críticos literários. A própria simplicidade do poema já se mostra distante de possíveis exigências eruditas da crítica. Diante disso, ao poeta pouco importa o que dizem os críticos, “diga que sirvo pastiche/ com molho de escabeche/ e sorvo tudo em pistache/ numa poção de dervixe”. E independentemente do que queira dizer a crítica, ele mesmo faz pouco caso dos seus versos: “eu mesmo faço capacho/ dos versinhos que remexo”.
Além disso, há ainda o fato de todos os versos terminarem em “x” e “ch”, como em avexe, pastiche, escabeche, pistache, dervixe e outros. O que dá a sensação de haver um eco, como diz o título da parte, durante a leitura do poema.
Na segunda parte, Suas sombras, as sombras são a presença que paira do outro sem ele estar. Em Lampejo, por exemplo, a lembrança de uma mulher que o abraçou e se foi, deixou seu rastro, a parte de um abraço, marcado em seu corpo: “levando o abraço consigo/ e me deixando abraçado/ naquele abraço partido”. O abraço partido é a sombra do abraço inteiro, da presença da mulher que se foi.
No soneto Tiro ao alvo, sombras e imagens pairam sobre o poeta ou ao seu redor como num sonho, num delírio quase simbolista e sensual, onde “Bandos de moças nuas, em revoada,/ no ar dançavam seráfica ironia”.
Já em Arco para uma mulher, o poeta desenha o passar do tempo num corpo de mulher, quando ela não mais for banhada por olhares brilhantes. Nesse dia, “a linha/ do teu corpo desatada,/ desenhará no ar/ a saudade da tua nudez”. E nesse passar do tempo, o que ela foi um dia, cheia de olhares, será apenas uma sombra na lembrança do que é agora.
Na terceira parte, Playback, a reprodução de sons previamente gravados ou imagens em movimento aprecem pairar nos versos, como se o poeta rememorasse o passado reprisado numa gravação antiga.
Em A costureira, o passado é revisitado no trabalho de costurar lembranças no já conhecido tecido da memória, do dito popular. Nele o sonho é a memória em retalhos; lembranças que vêm sorrateiras como uma melodia antiga, onde “A costureira com seus figurinos/ volta páginas e páginas, num contínuo/ desfile de moldes agulhados”.
No poema Retrato relâmpago, se dá a lembrança da infância, como se tudo ocorresse automaticamente (a última estrofe, colocada entre parênteses soa como uma voz por trás que fala em playback): (o menino sentado no cachorro/ esperou cinquenta anos/ para se olhar pensativo/ sentado no cachorro).
Além dos exemplos acima, nessa terceira parte há muitas ligações musicais em poemas como Piano antigo, Rotornello e Segredos.
Já em Notícias, quarta parte, os poemas assemelham-se a notas de jornal, crônicas. Largo do Arouche, por exemplo, uma crônica sobre o passado, fala de uma antiga moradia do eu lírico: “olho pro quinto andar: morei lá outrora/ naquela sacada/ do edifício de pastilhas/ vivia cheio de ideias”. Enquanto Os domingos descreve a transformação desse dia, passo a passo. Diz ele: “É lentamente/ que o domingo vai engordando// […] Há/ o domingo obeso vergando tua espinha// […] A noite vem como esperança/ de que tudo acabará em breve/ para em breve recomeçar/ a semana, o trabalho”.
Por fim, na quinta e última parte, Surdina, muitos poemas lembram a morte, que leva os homens em silêncio, e atos furtivos, discretos como em Lição onde, na morte do pai, o filho busca escutá-lo com o ouvido na sua boca: “mas não ouvi mais que um sopro,/ um insuspeito suspiro, resíduo/ do teu primeiro vagido,/ teu susto de recém-nascido”.
O pai também está em Promessa de pai. Nele, novamente há o “soprar no ouvido”, na promessa de retorno do pai que se foi e não voltou. Até que o silêncio reinou quando “As roupas se despegaram/ do cabide, voaram fotos,/ canções viraram assobio,/ enquanto um piano emudeceu/ na sombra da tarde vazia”.
Em Outra vezes outra, a morte é tratada ao lado do tempo. Até mesmo a morte envelhece, de tanto ter passado o tempo em que ela ocorreu. Até os que ficaram, como o poeta, sentem-se mais velhos que a morta: “quando, de tanto tempo, já é mais moça/ a morta que o nosso espelho”, onde nos vemos e reconhecemos o tempo passado em nós; enquanto as “crianças antigas passam curvas”.
Enfim, os temas são vários nos poemas de Alcides Villaça. Músicos e escritores são referenciados em muitos poemas, como Bach e Milton Nascimento, Drummond e Bandeira. E mesmo abrangendo temas já conhecidos como o amor, a paixão, a morte, a solidão e a música, o poeta lhes concede novas imagens, dá-nos outra perspectiva para o olhar, fazendo-nos enxergar o que já havíamos visto antes com um olhar diferente.