Atavismo animal

Resenha do livro "Histórias zoófilas e outras atrocidades", de Wilson Alves-Bezerra
Wilson Alves-Bezerra, autor de “Histórias zoófilas”
03/07/2014

Na internet, zoofilia comumente é ligada a relações pouco ortodoxas entre humanos e animais. Contudo, zoofilia diz respeito direto à amizade por animais. Porém, não é de amizade com os bichos que tratam os dezenove contos de Histórias zoófilas, de Wilson Alves-Bezerra.

A zoofilia no livro não se apresenta na relação vulgar entre os dois animais, homem e bicho, mas na personificação desses e na atitude animalesca dos humanos que desfilam, ao longo dos contos, atrocidades e luxúrias.

No conto O aprendizado da cana, por exemplo, um pangaré, em suas ruminações e lembranças, tem atitudes humanas apreciando a natureza, enquanto em Divino, com ares de conto fantástico, “um pequeno babuíno com asas”, fala em até vinte idiomas e age como psicanalista, atendendo clientes sem nada cobrar.

Mas o primeiro conto, Uma vida nos cocos, não apresenta um animal de forma direta. Nele, uma mulher busca biografar seu marido, Carlos, na tentativa de manter viva a estirpe de sua família; o que faz de forma inusitada: “Acrescentar a cada dia um coco, como forma simples de dizer que aquela vida ainda se contava e ainda se contaria, e dar nova forma e cara à existência que não cessava de contar-se e desenhar-se, grandiosa e vasta pelo pátio imenso do centro”.

Os cocos representam o marido, a vida da família e talvez da cidade; uma vida simplória retratada em frases como: “se lhe faltava já o pão também lhe faltava o rumo” (sobre Maria, a esposa que montava os cocos); “povoado parco de história e graça” e “eram quase pátria aquelas palhoças tímidas” (ambos sobre o povoado).

Contudo, não só no povoado e na organização dos cocos a simplicidade se mostra, mas também na sua imutabilidade. Colocados lado a lado os cocos se mostram sem graça e enfadonhos na sua similaridade, como parecia ser a vida na cidade. Até o dia em que um desconhecido cortou longitudinalmente um dos cocos, que amanheceu de “entranhas à mostra”, e deu vida a tudo, pois, violada a simetria dos cocos, do povoado e das pessoas ali, encerrou-se a mesmice. Como diz o fim do texto “O povo se desassossegou. A tarefa de Maria resultou em fruto”.

E é nessa simplicidade que se encontra a animalidade marcante de quem vive dos instintos básicos. Vendo-se incapaz de escrever uma biografia com palavras, Maria mostra na criatividade um instinto ancestral.

Já em Santiago o relato é verborrágico. Seu narrador narra-se como num sonho desgovernado, “[…] percebo que dormi falando, que disse coisas desconexas”, diz ele, ao se olhar num espelho de bar. E assim a narrativa se derrama, numa ação sobre a outra como numa vida que se cumpre sem medida, feito um animal que vive um atavismo, reproduzindo a simplicidade da existência de seus antepassados, numa sonolência rarefeita.

Mais à frente, no conto A mulher-cachorro o instinto e o animalesco se fazem presentes de forma direta. Uma bela mulher negra é mantida presa numa coleira, vivendo na casa de cachorro há sessenta anos; quando, um dia, avança sobre o narrador: “E não pude menos que me assombrar ao perceber que sob a cara negra do cão — não pintada — escondia-se uma boca humana, com nariz e humanos olhos logo acima — embora tudo fora articulado por uma destreza de cão”.

Entre a possibilidade de racismo e de desrespeito aos direitos humanos, e outras atrocidades, o conto apresenta um caso de adequação, ou readequação do homem ao modo animal de ser. A mulher se mostra condicionada a ser cachorro com instintos que lhe parecem naturais: “A mulher-cachorro uivava à lua cheia nascente”; o que leva o narrador a cogitar a hipótese de prazer por parte da prisioneira na sua condição atual: “não seria por gosto que a bela negra era cativa? Não era com gosto que ostentava a coleira, a corrente?”.

Porém, essa naturalidade instintiva e animalesca não se encontra em Paralela e as fúrias, conto onde a violência, a maldade e a crueldade extrapolam os limites humanos. Tonho, que sonhava sendo talhado por sua mulher, mata-a e a talha antes, apesar de amá-la. Do cano do seu revolver, as balas que matam a amada são denominadas Fúrias.

Vale lembrar que as Fúrias, ou Erínias, como também eram conhecidas na mitologia, eram as guardiãs das leis da natureza e da ordem das coisas, no sentido físico e moral, agindo também como vingadoras de crimes em família, perseguindo e punindo implacavelmente todos os que violassem os direitos dos outros, levando-os à loucura, como ocorre com Tonho no bar onde bebe e conjectura outras mortes, após matar a mulher.

As fúrias que saem do revolver, no primeiro momento, matam a mulher de Tonho, Paralela (nome que lembra um universo paralelo como o que vive Tonho), depois agem sobre o próprio assassino, atormentando-o.

Em outra direção, o conto O sentimento açougueiro do mundo, que apesar do nome, não tem carne, a atrocidade é imaginária. João quer escrever uma história, e em suas tentativas, imagina textos escatológicos. Porém, não tem talento, e os textos se perdem. Pensa em orgia com animais, pensa num homem apaixonado que vê sua amada morta pouco antes de a ela se entregar, e que depois, obscenamente, estanca “o sangue da moça com sua genitália”.

Os projetos de textos de João, fazem dele um açougueiro — o que pode explicar o título do conto — na bestialidade de suas ideias, onde a zoofilia do título do livro surge numa forma distorcida de amor aos animais. Nos projetos de João, homens e animais assemelham-se em suas ações, desejos e formas de viver.

Já em O homem que se perdeu, talvez o mais bem elaborado conto, encontramos a perda de si mesmo, do mundo e da família.

Um homem, tão perdido que seu nome não é revelado no texto, ilude-se com a beleza de certa cidade, por onde estava de passagem, envolve-se com uma mulher feia, é engabelado e por lá vai ficando sem estar — corpo e ser parecem se dissociar, o tornado outro de si como podemos perceber nessa passagem: “Mas numa noite de lua, de coração apertado, eu me vi não na casa da Iuara, não no trabalho, mas lá para as outras bandas de mim, num espelho de birosca em frente, e tive medo”. Em outra passagem, outro alerta: “perigava a alma embarcar noutro trem. […] coisa de virar outro mesmo”.

E nesse afastamento, o animal está no ser acuado que se torna, está na figura de Regino, antigo falso companheiro, que se torna seu inimigo, e lhe surge numa visagem com características de bicho, “Aquele focinho que era e não era o do Regino”, bem como na compreensão do próprio protagonista de si mesmo: “Eu era um animal arisco, feito aquele que vinha em direção de mim, mas eu era um bicho meio velho e meio morto”.

Além disso, o texto, tomado por uma embriaguês, um hipnotismo do rio, que permeia metaforicamente todo o conto, apresenta um atavismo animal, uma reminiscência do homem primário dos textos do naturalismo, no crescente que segue o conto, inversamente proporcional à decida do protagonista, que declina na escala humana e racional, feito bicho vivendo por instinto e embriaguez de besta.

Enfim, assim como nesse conto e como vimos em tudo o que resumi aqui, os personagens de Histórias zoófilas vivem presos a um mundo tomado pelo animalesco, muitas vezes fantástico, e por atrocidades de feras. Nada é o que parece à primeira vista, em tudo cabe outro olhar, mais fundo e perscrutador, e claro, outras interpretações.

Quanto à zoofilia que ilustra o título, neste breve esboço podemos perceber que ela está no comportamento atávico de seus personagens, seja em seus solilóquios e ruminações cruas e tão naturais seja nas suas atitudes para com o outro e para com a vida. Feito vítimas do instinto frio e direto, esses homens e mulheres parecem animais personificados em humanos, tal sua vida instintiva, porém ebriamente pensantes e ruminantes.

Histórias zoófilas e outras atrocidades
Wilson Alves-Bezerra
Oitava Rima/EdUFSCar
164 págs.
Wilson Alves-Bezerra
Coordenador de Cultura da Universidade Federal de São Carlos, professor adjunto na graduação e no Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura. Autor de Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (2008) e Da clínica do desejo a sua escrita (2012). Tradutor de Horacio Quiroga e de Luis Gusmán, finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor Tradução Literária Espanhol-Português por Pele e osso, de Gusmán.
William Lial

É poeta, ensaísta e mestre em Literatura Comparada. É autor de SombrasNoturno e O mundo de vidro. Além de colaborar com jornais, revistas e sites de literatura, também mantém o blog http://williamlial.blogspot.com.

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