A origem do mundo, curta obra de Jorge Edwards, acompanha o ciúme de Patrício, médico de cerca de 70 anos chileno exilado em Paris no início da década de 90. Para ele, sua mulher, Silvia, e seu amigo, Felipe Díaz, tiveram um caso e, ao longo da narrativa, ele tenta encontrar mais justificativas e respostas para provar isso.
Os três personagens principais são chilenos, exilados pela ditadura Pinochet em Paris. Já é o início da década de 90, e entre eles o sonho de uma revolução parece ser um fantasma de um passado há muito esquecido. Um dos méritos do livro é falar sobre a vida dessas pessoas, que deixaram sua pátria e ideologias para trás e seguiram com suas vidas em outro lugar, de certa forma até esquecendo daquilo e daqueles por quem lutavam.
O livro se constrói com a intertextualidade com a pintura A origem do mundo, de Gustave Coubert, 1866. O enquadramento do quadro mostra a vagina e o abdômen de uma mulher nua com as pernas abertas, se estendo das coxas até o início dos seios. Depois de ver o quadro pela primeira vez, Patrício fica obcecado com imagem — ela se parece com Silvia, sua mulher. Ele começa a frequentar o Musée d’Orsay para rever o quadro e remoer seus sentimentos.
A traição começa a se formar para Patrício quando ele se depara com uma excentricidade de Felipe: fotografar as mulheres com quem dormia. Patrício acaba encontrando uma fotografia que, assim como o quadro de Coubert, lhe remete imediatamente a Silvia (mesmo que sem aparecer o rosto da fotografada) na casa de Felipe, o fazendo acreditar que os dois já dormiram juntos. A situação é acompanhada da morte de Felipe, num misto de overdose e suicídio que rende uma das melhores partes do livro — a descrição de como Patrício imaginou ou reconstruiu os passos que levaram à morte de Felipe. Nesse momento, o autor mostra uma narrativa interessante, com um misto de imaginação e investigação do personagem:
Bebeu, teria bebido, a metade de seu uísque, que muito provavelmente lhe pareceu, pensou o doutor, a essa altura decisiva de sua vida, e só a essa altura, insípido, e caiu em sono profundo.
Outra relação entre os dois personagens fica implícita na narrativa de Patrício logo nos capítulos iniciais. O leitor pode ficar com a impressão de que o médico sente um misto de admiração e inveja do que Felipe representa para ele. Apesar dos quase 70 anos de idade e de vários abusos, Felipe conserva uma imagem física atraente e com uma postura inteligente. Patrício o define como um “intelectual latino-americano que passou pela religião comunista” que teria melhorado ainda mais com sua vida de exilado em Paris.
Embora tivesse o rosto visivelmente deteriorado pelos excessos alcoólicos e de toda ordem, sem excluir as ocasionais cheiradas de cocaína — e, talvez nos últimos tempos, não tão ocasionais assim —, Felipe Diaz ainda conservava sua bela estampa, realçada por alguns detalhes de apuro no vestir.
Leitores de Machado podem se lembrar de Bentinho em vários momentos, principalmente na maneira com que o personagem apresenta as provas sobre a suposta traição ao longo de sua fala. Ainda assim, Patrício soa menos fantasioso e menos convincente que o casmurro.
Além da inserção do quadro de Coubert na narrativa, Jorge Edwards utiliza citações do Sêneca nas aberturas de capítulos, relacionados principalmente ao momento dos personagens. O autor também é citado em conversas entre eles e de certa forma cria uma aura ainda maior de intelectualidade entre eles.
A edição conta com um posfácio de Mario Vargas Llosa, que defende que o livro de Edwards, “sob a enganosa aparência de leve diversão, é na realidade uma complexa alegoria do fracasso, da perda das ilusões políticas, do demônio do sexo e da ficção como complemento indispensável para a vida”. Outras partes interessantes desse texto é a descrição que Llosa faz do próprio Edwards e da relação entre os dois.
O livro é construído em sua maioria com a narração em primeira pessoa por Patrício, intercalada com terceira pessoa em alguns momentos. Além disso, o capítulo final mostra uma narrativa não muito convincente em primeira pessoa de Silvia, personagem da qual pouco se sabe ao longo da história. Edwards falha ao nos apresentar uma personagem não tão bem construída logo na conclusão do livro, mesmo que sua ideia seja mostrar uma diferente (e de certa forma surpreendente) perspectiva sobre a questão da traição.
Apesar de aberto a diferentes interpretações, o fim mostra uma curiosa postura dos personagens que parecem deixar de lado seu histórico de revolucionários exilados para envelhecer e encarar o final de suas vidas. Nesse momento, a traição toma a estranha perspectiva de ser mais animadora para o personagem que uma não-traição, fazendo sua vontade e seu amor voltarem. A fantasia criada por ele se torna mais interessante que a realidade e parece dar mais cor a dias tediosos da velhice.
Ainda que seja possível criar alguma simpatia pelo neurótico Patrício e a maneira desajeitada com que lida com um problema em potencial na sua vida, não é tão fácil se apegar ao problema dele ou concordar com suas ações em relação a isso. Com a narrativa construída principalmente do seu ponto de vista, é também difícil se apegar aos outros personagens — Felipe parece interessante e charmoso e Silvia parece uma esposa carinhosa e um tanto distante, mas não muito mais que isso.
O livro fica então com um aspecto forte — a escrita de Edwards. Mesclando narradores em primeira e terceira pessoas e tempos verbais, cria um efeito diferente sem cansar o leitor. O resultado é uma narrativa que inclui a ficção criada pelo personagem, suas opiniões, sua experiência de vida e sua maneira de ver o mundo e outras pessoas. Apesar de pouca história, a escrita de Edwards cria uma aura mais refinada à leitura e apresenta ao leitor brasileiro mais um grande autor chileno.