Foi para o meu uso pessoal que — com ou sem rima — criei esse conceito de “escritor lateral”.
Facilita-me a vida, organiza meus índices, areja as minhas listas (embora já não faça mais quase nenhuma)… Ou, talvez, devesse eu conjugar o verbo no passado e dizer que, um dia, para mim foi útil ter essa conceituação nos meus silêncios noturnos — que são, com certeza, mais límpidos e claros do que minhas falas sobre a literatura, nesta sua idade crepuscular, Senhora da Tempestade (do agora triste Manuel Alegre de Portugal).
Literal e literariamente, o escritor lateral me fascina, ainda. E também me ajuda, ainda, na faxina mental, enquanto ainda penso e ele, o Lateral, existe para mim mais do que o jogador que ocupa essa posição no, aqui, todo-poderoso campo de Futebol (essa, dizem, paixão brasileira que ora a “copa das copas” expõe para o mundo como expressão de paixões populares praticamente reduzidas aos verdes-cinzentos gramados do Dinheiro — dindin que nunca será lateral, porque “dinheiro é dinheiro”, pra resumir, e assim termina, sonante sempre, dizendo a última palavra sobre paixões fingida$ ou reai$).
Que longo parêntese ladeira abaixo das minhas medidas setecentas palavras neste campo mensal das letras.
Mas, e o “Lateral” — quem é ele?
Começando do princípio (é claro), o escritor lateral sempre existiu e há muito pedia que o reconhecessem como tal.
Laterais foram, desde Homero [o Poeta nunca lateral], todos os escritores que honrosamente não foram convidados para a festa do vizinho na voz de Cassiano Ricardo: “Em meu quarto, o silêncio e a lâmpada/ que me divide em dois:/ duas vezes eu e uma lâmpada só./ No salão do vizinho/ que não me convidou/ a mesa farta e os convivas/ bebendo um vinho triste”…
Bem, o poema segue — até chegar, no final, a fazer o brinde “aos excluídos”.
Voltemos ao lateral: é ele o escritor excluído?
Presumo que não seja precisamente isso, embora, de longe, pareça excluidíssimo.
Porque o escritor lateral, em princípio, nunca escreveu para pisar no tapete vermelho da Literatura com o L maiúsculo dos Grandes Nomes das Coleções dos Gigantes das Letras.
Não. E é curioso, isso: o escritor lateral quase sempre teve/tem uma profissão que ele escolheu como qualquer outro anônimo não-escritor seguindo pelos caminhos da vida. Por exemplo, a profissão de médico — que foi a do lateral Victor Segalen, autor do misterioso René Leys. Procurem no Google; é mais fácil do que eu começar explicar, no limite das setecentas, quem foi Segalen e como é o seu magnífico René…
Então, temos uma espécie de dado biográfico comum a todos os laterais: a profissão que, às vezes, levava-os para os mais longínquos lugares da terra (Segalen viveu uns anos na China, também escavando como arqueólogo amador), sem pensar em literatura, sem pretender escrever nada, sem estar esperando retirar da experiência alguma obra que o fizesse vir a pisar no mainstream literário…
O Lateral que seja mesmo lateral, é realmente inocente disso. Quero dizer, da “premeditação” de escrever para se imortalizar (?) com a incerta obra-prima que vá despertar o interesse pela sua vida — secreta — de lateral na alma e no corpo evadidos para latitudes & longitudes estranhas.
Porém, quando ele decide escrever, o escritor lateral escreve um livro, um poema, uma obra que só poderia ter sido escrita por ele — e não por um Hemingway vivendo apenas para transformar o vivido em páginas e mais páginas escritas “para a Glória” (??), o Nobel, o Cervantes, o Camões (que acaba de ir para nobody).
O Lateral, então, não é um ninguém, porém é um desiludido como o Rimbaud que fugiu para a África a fim de se tornar menos que um lateral: virar um desconhecido.
E qual é o problema com isso? Estar ignorado na multidão é poder andar nos cais das sombras da vida sem iluminação artificial de entrevistas e o mais que cerca os não-laterais, os que desesperadamente tentam se manter no tapete vermelho dos holofotes antigos e, quando não mais o conseguem, às vezes dão um tiro nas suas velhas cabeças perdidas (como Ernest fez), porque um escritor que, o mais possível, tentou ser o tempo visível não se adapta à invisibilidade, quase, dos laterais como T. E. Lawrence que terminou seguindo para a caserna como quem procurasse um monastério laico cheio de anônimos com “Fracasso” escrito na testa.