Por trás de Mary Shelley

Resenha do livro "Maurício ou a cabana do pescador", de Mary Shelley
Mary Shelley, autora de “Maurício ou a cabana do pescador”
03/06/2014

Enquanto trabalhava na Ode ao vento oeste [Ode to the west wind], Percy Bysshe Shelley lançou mão de anotações sobre agricultura. para as quais contara com o auxílio de George William Tighe, que também lhe forneceria diversas informações científicas para a elaboração de seu pensamento acerca do vegetarianismo. Filho de um advogado e parlamentar com interesses literários, Tighe estudara em Eton e vivia em Roma quando conheceu Margaret King, então casada com Stephen Moore, segundo Conde de Mount Cashel. A inesperada paixão levaria Margaret, que tinha cerca de trinta anos, a abandonar o marido e os filhos para viver com Tighe, com quem se casaria em 1826, quatro anos após a morte de Stephen. Embora a relação com o novo companheiro não fosse de todo feliz — na verdade, enfrentariam períodos de grande turbulência, sobretudo por razões financeiras —, Margaret encontraria oportunidades para desafiar diversas barreiras impostas às mulheres do seu tempo, vestindo-se como homem para estudar medicina em Iena e organizando em Pisa a “Accademia dei Lunatici”, frequentada por figuras como Giacomo Leopardi e Giuseppe Giusti.

Se Margaret logrou chegar tão longe, pode-se questionar em que medida isso não se deve ao seu contato com as ideias de uma das mulheres mais dispostas a enfrentar as estruturas da sociedade patriarcal em sua época: Mary Wollstonecraft, figura de crucial importância para a elaboração do pensamento feminista. Embora permanecesse menos de um ano trabalhando como governanta para a família de Margaret, esse período foi suficiente para que a adolescente recebesse um impacto capaz de perdurar décadas: quando Margaret se unisse a Tighe, o casal adoraria a alcunha “Mason”, em referência às Estórias originais [Original stories from real life] de Wollstonecraft. E essa relação ainda se estenderia para a geração seguinte.

Em 1820, Margaret recebeu a visita de três jovens: Mary Godwin, filha de Mary Wollstonecraft que em 1816 se casara com Percy Bysshe Shelley — que a acompanhava nessa viagem —, adotando o seu sobrenome, e sua meia-irmã Claire Clairmont. Seria essa a oportunidade para Margaret retribuir o que lhe oferecera a pioneira do feminismo: ela acolheria e aconselharia Mary Shelley, que não chegara a conhecer a mãe, morta onze dias após o parto. Por sua vez, a já autora de Frankenstein se tornaria amiga das filhas de “Mrs. Mason”, escrevendo uma narrativa para a mais velha, Anna Laura Georgina, a Laurette. Completava-se, desse modo, um ciclo: se Mary Wollstonecraft inspirara a adolescente Margaret King, esta acolhera a jovem Mary Shelley, que agora elaborava uma obra para entreter e instruir a menina Laurette. 

Fábula pessoal
Escrito naquele ano de 1820, Maurício ou a cabana de pescador [Maurice, or the fisher’s cot; a tale] foi considerado um texto perdido por mais de um século e meio. William Godwin se recusou a publicar a obra em sua Juvenile library por motivos ainda não totalmente esclarecidos, possivelmente relacionados à sua extensão ou à edição de uma obra de Caroline Barnard com título similar (The fisher boy of Weymouth). Em uma extraordinária coincidência, Cristina Dazzi — cujo marido é descendente de Nerina, a irmã mais jovem de Laurette — encontraria os manuscritos do volume exatamente no ano em que se celebrava o bicentenário de nascimento de Mary Shelley. Publicado pela primeira vez em 1998 por Claire Tomalin, autora de uma importante biografia de Mary Wollstonecraft, a obra alcança agora o público brasileiro em cuidadosa edição da Graphia, com belo projeto gráfico de Renata Kühn — vale destacar, além da beleza da capa, o uso de imagens de artistas contemporâneos de Mary Shelley, muitas das quais representações pictóricas de locais mencionados na narrativa —, competente tradução e esclarecedora nota assinadas por Luciana Viégas — apenas rígida, em alguns momentos, por uma visível preocupação em seguir de perto o texto original.

Dividido em três partes, Maurício traz um enredo simples (que aqui sintetizamos na íntegra, alertando aquele que desejar ler a obra sem conhecer o final que suspenda aqui a leitura da resenha). Na primeira parte, um viajante chega à cidade de Torquay, onde acidentalmente assiste a um funeral humilde: um caixão, carregado por camponeses, é acompanhado por quatro carpidores — um dos quais, um menino que aparenta ter cerca de treze anos, cujo sofrimento contrasta com a indiferença dos outros. Ele é Maurício, o jovem que empresta o nome ao título da obra. Estimado por toda a comunidade desde que ali aparecera inesperadamente, Maurício conhecera o velho pescador Barnet poucos meses após a morte de sua esposa; adotado por ele, passara a ajudá-lo, mantendo limpa sua cabana e fazendo-lhe companhia — até a morte de Barnet, cujo funeral o viajante testemunhara.

A segunda parte da obra relata o encontro do misterioso viajante com Maurício, quando o jovem tem a oportunidade de contar como chegara à cabana: maltratado pelo pai, decidira sair de casa e não voltar até ter meios de obter o próprio sustento; com a morte de Barnet, tinha uma semana para encontrar um novo lugar onde viver, já que o irmão do pescador vendera o barco a um amigo que viria morar na cabana. Na terceira parte, o viajante é quem relata sua história, o que prepara o final feliz: seu filho Henrique fora raptado aos dois anos em Ilfracombe; desde então, ele passa dois meses de cada ano à sua procura, percorrendo Devonshire vestido com roupas simples. Após encontrar a mulher que sequestrara seu filho e ouvir a sua história, ainda sem ter a certeza de poder localizar Henrique, o viajante pergunta a Maurício se ele aceitaria acompanhá-lo e ser seu filho, caso a busca se revele infrutífera — apenas para ouvir do jovem a confissão de que ele é, de fato, Henrique, como percebera ao ouvir o que a sequestradora, a senhora Smithson, contara ao viajante.

Uma vez reunidos, pai e filho formam uma família amorosa; a pedido de Henrique, o pai compra a cabana de Barnet, na qual eles passam a viver dois meses por ano — e onde a própria senhora Smithson passa a morar, arrependida dos erros cometidos no passado. Formando-se em Eton, o protagonista viaja pelo mundo, mas sempre retorna à velha cabana, até que ela finalmente desmorona, após a morte da senhora Smithson. Ao fim, Henrique constrói uma nova cabana, que cede a um pobre pescador e a seus dois filhos.

Maurício vem sendo lido como uma narrativa que, ao tratar de uma criança perdida — três vezes: ao ser raptada, ao fugir de casa e ao perder a proteção do velho Barnet —, remete a dolorosas vivências de Mary Shelley e seu círculo de convívio: ela e Percy Shelley haviam perdido três filhos até aquele momento; Percy não conseguira a custódia de Ianthe e Charles, os filhos que tivera com sua primeira esposa, Harriet; Claire tivera de deixar Allegra ao separar-se de Byron; e mesmo Margaret vivenciara essa perda ao optar por viver com Tighe.

Não obstante, pode-se também cotejar a narrativa com Frankenstein, a fim de perceber como a destrutiva trajetória do monstro criado por Victor, a partir da experiência do abandono, contrasta com o percurso de Henrique, cuja índole permanece inabalada, mesmo passando pelo sofrimento decorrente de tantas perdas. A essa diferente perspectiva subjaz, porventura, a dimensão moralizante de uma obra dedicada a uma criança — à jovem Laurette — como uma “fábula” que, ao tematizar a marginalização, aborda a capacidade humana de superar as adversidades e alcançar uma integridade que lhe faculta conciliar subjetivamente os diferentes aspectos da existência. Maurício, afinal, persistirá em Henrique, mesmo quando este, já não mais o jovem camponês, for um homem educado em Eton; quando, já tendo encontrado a família com a qual viveria em felicidade, outras vezes voltar a Torquay para relembrar os tempos difíceis ao lado de Barnet, o velho pescador, tão importantes para o seu aprendizado existencial.

Maurício ou a cabana do pescador
Mary Shelley
Trad.: Luciana Viégas
Graphia
52 págs.
Mary Shelley
Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851) é mais conhecida como autora de Frankenstein ou o moderno Prometeu, escrito por ela aos dezenove anos de idade, que conta com dezenas de adaptações, inclusive para o teatro e para o cinema. Todavia, Mary Shelley também se tornou importante como autora de obras no campo do romance histórico e da narrativa de viagem, além de ter sido a biógrafa e primeira editora das obras de Percy Shelley.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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