Uma leitura atrasada: Kurt Vonnegut

Sempre hesitei em pegar um dos livros de Kurt Vonnegut Jr., e começar a lê-lo — no tempo em que muitos dos meus amigos que tinham bom gosto literário estavam lendo esse autor
Kurt Vonnegut, autor de “Matadouro-Cinco”
02/06/2014

Sempre hesitei em pegar um dos livros de Kurt Vonnegut Jr., e começar a lê-lo — no tempo em que muitos dos meus amigos que tinham bom gosto literário estavam lendo esse autor e (é importante dizer) entusiasmados com ele, ou, principalmente, com Matadouro 5.

Enchia o saco. Sem falar que, nas fotos, Vonnegut parecia um simpático hippie maduro, entre cético e sorridente. Porém, esse não era o meu maior motivo para evitá-lo, nas livrarias. O fato é que eu tenho um recuo — instintivo — em face de autores que todo mundo está lendo (como foi o caso do García Márquez de Cem anos de solidão, que demorei a ler mais do que todos, até porque a febre marqueziana não dava sinais de passar, etc.). Enfim, uma idiossincrasia: espero a poeira baixar, não me apresso a ler o que todo mundo está comentando, às vezes com um embevecimento tão frágil quanto o que cercou a ascensão e o esquecimento, tão rápidos, de um Milan Kundera, por exemplo.

Nessas ocasiões, eu procuro um bom escritor lateral (como chamo), que ninguém esteja lendo — um Victor Segalen, digamos, que está de bom tamanho — e dano a ler o cara que caminha por fora do tapete vermelho da literatura da hora, o anti-Herman Hess que todo mundo lia há três ou quatro décadas, sentindo-se o próprio lobo da estepe daquelas capas semitibetanas que me fizeram desconfiar de Sidartha durante anos e anos.

Isso tudo é para dizer que eu perdi um bom tempo “ignorando” o Vonnegut — que os meus amigos entusiasmados com ele, há trinta anos, hoje esqueceram quase completamente (“ah, o Kurt? É, ele era bom… eu li muito”), enquanto, neste ano da “Copa das Copas” (?), eu li o meu primeiro Vonnegut, e devo explicar como, desde logo.

O livro — com o título brasileiro (absurdo) O espião americano — jazia abandonado no consultório do meu cardiologista, entre revistas, dois livros de Paulo Coelho e um B. Traven de alta qualidade (A barca da morte), entre outros. O médico que vigia o meu combalido músculo cardíaco faz seus clientes esperarem horas e horas pela consulta na qual conversamos mais sobre o mundo lá fora do que sobre a minha situação cardiovascular no país dos apagões, dos rolezinhos, dos arrastões (serão a mesma coisa?) da greve da polícia militar e dos modelitos de Dilma.

Então, na espera dessa conversa tergiversante e tão pouco médico-especializada, eu preguiçosamente comecei a ler a história do espião de Kurt Vonnegut, no romance originalmente intitulado Mother night.

DOIS DIAS DEPOIS [medição do tempo conforme aparece em certos filmes]
Quarenta e oito horas depois, eu entendi que havia perdido de ler um autor que sabia urdir uma história como poucos e que possuía um senso de humor cínico, quase trágico de descrenças embutidas na sua escrita humana, demasiada humana — ou não — porque KV é um autor disposto a rir (amargamente) da esperança e da desesperança, da bondade e da maldade à solta em banalidade que marcou o século passado.

Pelo menos nessas falsas confissões de “Howard W. Campbell Jr” — o tal espião americano elevado para o raso título brasileiro da Artenova — acompanhamos uma rica narrativa de peripécias do locutor propagandista do nazismo transformado, quase involuntariamente, em agente pró-Aliados: do horror de Berlim em chamas, ele consegue escapar para a América e, lá, vai viver como um zombe mantido por pequena herança familiar até que…

Sem mais spoilers, não vou tirar o prazer de leitores eventualmente despertados para um romance recheado de surpresas bem costuradas (como não mais se encontra na literatura que dispensou, ultimamente, a imaginação usada durante dois mil anos).

Por falar em milênios, por Mother night desfilam alguns dos figurões do Reich de Mil anos desmontado em sangue e pó dos próprios alemães, depois de trucidarem muito mais de seis milhões de pessoas transformadas em cinzas, sabão e memória que — justificadamente — não quer calar sobre o genocídio de judeus, ciganos e outras etnias perseguidas por loucos comandados pelo Fürher de bigodinho da sinistríssima opereta trágica até o último instante (uma obsessão de Vonnegut, ele mesmo um soldado ianque feito prisioneiro de guerra na Berlim onde trabalhou num “matadouro” que, ironicamente, salvou-lhe a vida).

O jovem arrogante que eu fui torcia o nariz para um escritor “sem cara de escritor”. Enganei-me redondamente — e, agora, parto para ler o celebrado Matadouro. Aliás, como é a cara de um escritor? Não sei mais. E ninguém mais sabe, talvez. Então, é ler quem, como Kurt Vonnegut Jr., consiga nos manter presos da primeira à última página, no crepúsculo — provavelmente — da literatura.

Leia ensaio de Fabio Silvestre Cardoso sobre Kurt Vonnegut.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho