O nome do livro é um tanto autoexplicativo: Quatro soldados narra a história de quatro oficiais de um antigo exército brasileiro, em uma época colonial de definição de fronteiras e identidade nacionais. São os últimos anos da guerra entre jesuítas e índios e o país como o conhecemos não está mais tão longe de ser formado.
O primeiro dos soldados que o leitor conhece é Licurgo, jovem e inocente. Teve pouco contato com o mundo antes de entrar no exército (sua mãe morreu no parto e seu pai o evitava, fazendo com que passasse seus dias pela casa da família) e pouco sabia do país e das pessoas antes de começar a lutar por eles. Sua (des)aventura começa já na primeira missão, quando nem tudo vai como se esperava e ele acaba aprendendo coisas novas e mudando um pouco sua visão do mundo.
Outro soldado é o Andaluz — apesar de que o mais certo seria chamá-lo de desertor. É provavelmente o mais charmoso dos quatro e se permite ser levado pela vida. Após abandonar o exército, encontra vários jeitos para sobreviver, cada um mais improvável que o outro. De certa forma é também um tanto hostil e arrogante. Dentre os personagens é o que mais lê e que mais conhece do mundo e das pessoas.
Já o capitão Antônio Coluna é misterioso e reservado, e optou por dar sua vida ao exército e leva a sério cada uma de suas missões. Também tem uma relação conturbada com a família e opta por esconder seu título de nobreza português para viver a vida como um comum no Brasil.
O último dos soldados, por opção do autor, só é revelado mais para o final da narrativa — e a escolha será mantida na resenha. Ainda assim, é possível dizer que ele é uma figura ambígua, tanto pela maneira com que é inserido na narrativa como no papel que desempenha no exército.
Os quatro personagens têm personalidades diferentes. Em comum têm a maneira com que vivem — andarilhos, parecem não ter achado seu lugar no mundo, e em alguns momentos sequer parecem estar procurando. Eles mantêm poucas raízes, não têm exatamente um lugar para o qual voltar — apenas um novo para ir em seguida.
Mesmo que cada um dos soldados esteja vivendo suas próprias aventuras, o caminho deles se cruza ao longo da narrativa. Os encontros são curiosos e as reações dos personagens, muito bem montadas, acentuando as personalidades de cada um.
Quatro soldados é dividido em quatro partes, cada uma destinada a narrar um episódio específico na vida de um ou mais dos soldados. Esses acontecimentos são aventuras, com um tom um tanto místico e fantasioso, que cria uma aura que subverte a história real dos livros didáticos — os personagens se deparam com labirintos de onde ninguém sai com vida, mulas sem cabeça e até monstros enterrados em cavernas profundas.
O cenário criado nos mostra apenas que os moradores dessa nova terra não a entendiam. O mistério de vir para um lugar como o Brasil era tamanho que vários mitos foram criados no processo de compreensão desse novo lar e as explicações místicas eram parte do cotidiano. O cenário da narrativa é uma terra onde quem viaja é com frequência atacado por índios, ainda não completamente dividida entre espanhóis e portugueses, habitada por jesuítas que tentam dar uma ordem “pacífica” para tudo isso.
Uma das coisas mais interessantes do livro é o narrador — que conversa com o leitor com ares de Dom Casmurro e conta as aventuras com um olhar quixotesco. E o autor guarda ainda uma surpresa quanto ao narrador da história, que se personifica diante do leitor em determinado momento do livro. A partir daí, é interessante perceber como a criação da linguagem e do tom está completamente ligada à construção dos personagens e ao ponto de vista que o leitor tem da história.
O primeiro parágrafo do livro (a seguir) já demonstra a maneira com que o narrador transparece uma personalidade ao longo da narrativa. Apesar de a primeira pessoa não estar presente em todos os momentos do texto, fica claro que a história está sendo narrada por alguém que de certa maneira soube e reproduz todas as aventuras, fazendo com que seja determinante para o formato da narrativa:
Uma vez que cabe a mim, teu narrador, a obrigação de narrar, e a ti, meu leitor, a de ler — se assim te apraz —, faz-se mister, por questões de cortesia, que nos apresentemos. Porém, não sendo possível que eu te conheça, não há sentido que conheças a mim, posto que cá eu ficaria em posição de desvantagem contigo. Permita-me, então, que aqui apresente somente minha intenção, e esta é de narrar. E, ao fazer tal afirmação, estabeleço o compromisso de que te narrarei somente aquilo que vi; o que não vi, ouvi; o que não vi nem ouvi, li. Já aquilo que não vi, ouvi ou li, inventei, pois, se as passagens mais cheias de assombros e maravilhas são todas verídicas, coube às mais banais e cotidianas o fardo de serem todas fictícias, do contrário, como se sabe, a narrativa não anda, e é preciso dar verossimilhança aos fatos.
Além disso, logo no começo do texto o narrador afirma não ser completamente confiável, dando ainda mais um tom fantasioso à obra.
Outro aspecto da narrativa é o uso do humor e de uma ironia leve, tanto na improbabilidade do que acontece com os personagens como nas reações dos personagens perante tudo. Por exemplo, dois dos soldados se conhecem em um bordel, que também é frequentado por um padre viciado em jogos que, para não cair em pecado, não aposta dinheiro.
Durante a leitura, é quase inevitável não se lembrar de Terra Papagalli, de José Roberto Torero e Marcos Aurelius Pimenta, mesmo que esse aconteça em um período anterior, logo após o descobrimento, enquanto Quatro soldados se remete ao período de colonização. Ainda assim, as duas narrativas usam o humor, os personagens cativantes e um tom fantasioso para imaginar o Brasil de antes.
Algo interessante da história para amantes de livros é que, ao longo da narrativa, fica-se sabendo um pouco sobre como era o cenário livreiro no país daquela época — como era difícil achar obras nessas terras e como existia até um contrabando de itens em um mercado negro, permitindo com que obras chegassem aos seus leitores.
E, falando do objeto livro, a edição de Quatro soldados traz alguns itens gráficos que enriquecem a obra. As aberturas de capítulos têm ilustrações e a fonte foi desenvolvida especialmente para o livro, baseada na tipografia usada no primeiro livro publicado no Brasil.