O fiel e a pedra

Talvez não haja na literatura brasileira obra ficcional tão heterogênea quanto a do pernambucano Osman Lins, falecido prematuramente em 1978, com 54 anos.
Osman Lins, autor de “Avalovara”
01/05/2014

Talvez não haja na literatura brasileira obra ficcional tão heterogênea quanto a do pernambucano Osman Lins, falecido prematuramente em 1978, com 54 anos.

Seu livro mais famoso (e provavelmente menos lido) é o romance Avalovara, de 1973. Constituído por oito linhas narrativas aparentemente independentes, que correspondem às oito letras da mais impressionante frase palíndroma do mundo (sator arepo tenet opera rotas), Avalovara pretende ser a súmula da experiência existencial humana, sobre o jogo lógico das interseções da espiral (que simboliza o tempo) e do quadrado (representando o espaço).

Romance que explica o próprio processo de sua composição, acaba sendo também a celebração do inominável, das realidades que escapam à própria literatura, tanto que uma das personagens fundamentais é designada por um signo impronunciável, irredutível às letras do alfabeto.

Com Avalovara Osman atinge o auge da sua fase experimental e geométrica, que conta ainda com as novelas de Nove, novena e com o romance A rainha dos cárceres da Grécia.

Curioso que esse mesmo autor cerebral e matemático tenha escrito, além de teledramaturgia, as comédias Lisbela e o prisioneiro, levada às telas com muito sucesso, e Guerra do cansa-cavalo, ambas auridas nas tradições populares nordestinas, como fizeram, por exemplo, Joaquim Cardozo e Ariano Suassuna.

Tal diversidade é ainda mais surpreendente quando lemos o primeiro Osman Lins, o da novela O visitante e dos contos de Os gestos, expoentes da nossa melhor tradição introspectiva e machadiana.

É entre essas duas últimas vertentes, a da comédia e a dos contos, que se situa um outro Osman Lins, o do romance O fiel e a pedra. Entramos aqui num terreno raro nas letras vernáculas, porque mais próximo de certo romance de ação típico das literaturas de língua inglesa.

Bernardo Cedro, o protagonista, vai trabalhar no engenho de Miguel Benício, que é casado com Creusa, cujo comportamento adúltero é conhecido de todos. Para obter o desquite sem deixar bens para a mulher, Miguel propõe a Bernardo a compra simulada e fraudulenta de seus imóveis — que o empregado recusa, preso a seus princípios éticos.

Miguel Benício, então, procura Nestor. E Bernardo pressente que Miguel, depois de passar as escrituras, será assassinado, fato que ocorre pouco depois. Sugerindo que houve crime (e não acidente, como o corpo caído da escada sugeria), Bernardo passa a ter no novo dono do engenho um perigoso inimigo. E apesar de achar que Creusa não merece, defende os interesses da viúva.

Começa, então, a luta de Bernardo contra os capangas de Nestor, que quer expulsá-lo do engenho. A narrativa é densa e culmina com cenas de sítio e tiroteio. É quando surge a figura inesperada de um estranho, Ubaldo, que se agiganta no fim.

Osman Lins conseguiu escrever, a despeito da contemporaneidade, um livro que trata de heróis. E que não perde, por isso, sua grandeza, sua complexidade.

O fiel e a pedra, originalmente publicado em 1961, teve edições da Martins, da Melhoramentos, do Círculo do Livro e, recentemente, da Companhia das Letras. Embora a última ainda esteja em catálogo, é raro encontrá-la nas estantes das grandes redes livreiras. Nos sebos, devem ser garimpados os exemplares a partir da segunda edição, de 1967, pois o texto da princeps foi revisto por Osman. A R$ 15,00 estão bem pagos.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho