Mais tarde ou mais cedo, vai tudo virar facebook

Isso deveria ser o estribilho de um rock lançado por algum ídolo velho como Mike Jagger (os atuais Rollings constrangem), antes de morrer sobre plateias sexagenárias
01/05/2014

Isso deveria ser o estribilho de um rock lançado por algum ídolo velho como Mike Jagger (os atuais Rollings constrangem), antes de morrer sobre plateias sexagenárias — alguma espécie de tributo ao estilo de Kurt Vonnegut? —, mas, infelizmente, não é nem uma coisa nem outra, até porque não soa tão bem quanto a mais nova pergunta do Face: “Que simpatia você está buscando?”.

As perguntas de Mark Zuckerberg são do ramo da filosofia de Valesca Popuzuda. O questionário sobre se a Literatura (assim, com maiúscula) morreu e tudo o mais, está implícito, claro. O papel de escrita que seria de moscas mortas se houvesse uma grossa superfície de cola de Burroughs sobre as letras abandonadas, de maneira que você pudesse escolher continuar a ler como um rascunho ou deixar pra lá, a página virada, o próximo texto desfeito na “elegante melancolia do crepúsculo” de frases que já foram escritas e não adianta repetir em livros novos que nascem enrugados como bebês sem cabeça cuja boca falta (eu mesmo já escrevi isso em algum lugar, não?)…

Você sabe que uma civilização está acabando quando as frases começam a dar a volta à cabeça ágrafa da cultura — o mal-estar, etc. — e ninguém precisa nos dizer isso numa sala refrigerada de segundo andar, em clubes literários de forças quebradas e infinita hipocrisia que afirma: “continue a escrever bobagens pelo supremo bem da arte (assim, com minúscula), agora que tudo caminha para ser como feed azul-branco de fotos, autopropaganda, risos e reticências graficamente representadas na banalidade que estragou o significado das coisas”.

Esse “significado das coisas” é uma frase estragada sem significado, uma coisa dita pela tal boca sem cabeça que assumiu a de nós todos, ou logo-logo assumirá plenamente, quando, “na (i)maturidade do tempo”, tudo for para agitar antes de usar: caixas de suco, destinos baratos vividos pela TV, selvas africanas daquele quarto de Bradbury com os leões digitais mastigando os ossos das crianças reais que perderam as paredes dos livros antigos cujos meninos dormiam nos homens da terceira, da quarta, da quinta leitura no banco de louça de um quintal das graças de folhas caídas no escuro.

Lembro-me de algo importante que havia na conversa sobre “os grandes cemitérios ao luar” — era quase noite, a presença dos livros realmente lidos era opressiva naquela sala de janelas fechadas (sempre) como se fosse para interditar a vida. Essa era a minha ideia idiota: “interditar” o que quisessem chamar de “vida”, no lusco-fusco que trazia uma noite de vagalumes. A pergunta na manga: todas as suas histórias mais estranhas se passavam na China?

“O mundo depende do que acontece na China” — Baudelaire havia mesmo escrito isso, num caderno borrado que fora visto por alguém que sumira?

Os vagalumes eram os do poema de cabeça para baixo da gaiola presa de palavras suspensas do papel de arroz no qual estava escrito: “Se você passar uma semana no velho ‘país dos mandarins’ (argh), talvez venha a escrever um livro de quatrocentas páginas; mas, se você ficar seis meses entre os palácios vermelhos da antiga Cidade Proibida e o imenso estacionamento de milhares de bicicletas (que desaparecerão como os insetos luminosos debaixo do lenço do mágico), você, quem sabe, escreverá um cauteloso artigo de quatro páginas cheias de uma perplexidade… E se você ficar seis anos lá, então você passará dos sessenta anos sem ter escrito nada sobre qualquer aspecto de quaisquer daquelas províncias de neblina da China”.

Era sobre isso que eu queria falar — disse o missionário, com o seu fio de voz, o homem mais velho que eu jamais vira, uma espécie de fantasma de carne seca em cima de ossos que nunca mais caminhariam sobre aquela terra na qual estava borrada a data da sua chegada (olhando, gentilmente, para as crianças descalças como a missão falhada da sua vida levada por um rio atravessado de chuva).

Tinha sido há tanto tempo que ele poderia ter lido isso em Victor Segalen — quando Segalen ainda era lido. Não era muito forte a certeza de estar ainda vivo, enquanto lhe mostravam fotos, frases, frisos azuis passando numa tela de fibra dobrada na frente da cama de um sobrevivente de tempos recuados demais para gerações sem imaginação. Ou, talvez, todos os tempos se tornavam incompreensíveis, embora nenhum houvesse sido assim cancelado, anulado tão de repente e transformado em qualquer coisa que semelhava a vida — mas, decididamente, não era. E o seu gaguejo final estava para ser transformado num “meme” que se tornaria a febre virótica da semana, quem sabe, no mundo inteiro para além dos jardins de pedra de Pequim.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho