Direto do beco

Godofredo de Oliveira Neto: "Escrever pensando na opinião dos colegas escritores. É letal para a obra."
Godofredo de Oliveira Neto, autor de “A ficcionista”
01/05/2014

Alguns versos, ao descobrir o amor na pré-adolescência, foram combustível suficiente para o catarinense Godofredo de Oliveira Neto voltar-se para a literatura. Nasceu em Blumenau (SC), em 1951. Começou a ler cedo, entre 13 ou 14 anos. Sempre hábil em português, quando estava no cursinho, passou por uma situação que definiria seu futuro acadêmico: uma redação não foi bem aceita devido ao conteúdo e o jovem autor precisou prestar contas com a polícia. Na universidade, foi chamado duas vezes a depor. O clima já começava a ficar pesado, e Godofredo via seus amigos apreensivos; uma amiga, inclusive, desapareceu. Para alguém que considera a literatura sinônimo de libertação, o que poderia ser pior do que estar vivendo a opressão da ditadura? Infeliz com a situação, partiu para França. Em Paris, na década de 1970, graduou-se e virou mestre em Letras pela Universidade da Sorbonne. De volta ao Brasil, instalou-se no Rio de Janeiro (RJ), onde se tornou Doutor em Letras pela UFRJ. Seu primeiro livro é Faina de jurema, de 1981. Entre outros, é também autor de Menino oculto (premiado no Jabuti 2006), Amores exilados (lançado originalmente em 1997 como Pedaço de santo) e O bruxo do contestado (1996). A ficcionista (2013) é seu romance mais recente. Atualmente, vive no Rio de Janeiro e leciona na UFRJ.

Quando se deu conta de que queria ser escritor?
O poder de ilusão está na cabeça de todo mundo, todo mundo escreve ou escreveu. O mais comum é o poeminha quando da descoberta do amor na pré-adolescência. Também comecei assim. Depois a vida vai te levando para becos e ruelas decisivos ou não para ações futuras, como ser escritor. Depende então dessas estradas. Os meus becos me levaram para a escrita desde muito cedo. Vida leva eu!

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Nunca perder de vista que a obra literária não é um documento. A emoção estética deve ter prioridade. Daí a gente pode buscar a verdade histórica. A obsessão é fazer de tudo para não cair no redemoinho do real, que puxa a gente com força pra baixo. Abraço do real é abraço de afogado!

Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
A leitura do real — jornais e revistas — e romances e textos teóricos que mostram a ausência do mundo como o verdadeiro mundo. Leio um dia sim e o outro também trechos da obra de Proust. Tenho uma edição maravilhosa, da Gallimard, de 2.500 páginas num só volume, que cabe numa só mão, papel superfininho. Proust ao alcance das mãos!

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Ela veria que Paulo Honório, o narrador, apesar de sair vitorioso como gestor de uma fazenda, é depressivo e angustiado. É que não dá para ser feliz sozinho!

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Espaço de muita paz às vezes, espaço de música alta e vinho por outra, muita emoção invariavelmente. Tem que chorar, rir, se excitar, se apavorar, se emocionar com o próprio texto. Mas nem sempre a gente consegue.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Luz não natural. O sol maravilhoso é para brincar de castelinho de areia, de balde e pazinha na praia de Piçarras; ou em Camboriú, em Santa Catarina, antes de se tornar Hong Kong.

O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando a personalidade de artista vence o simples indivíduo. Se tiver conseguido, beleza.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Ler o parágrafo que acaba de escrever e achar que o texto não é teu.

Qual o maior inimigo de um escritor?
É deixar a memória racional se sobrepujar à memória involuntária. Perfumes, sons, tocares ou paladares é que te fazem encontrar o eu mais profundo.

O que mais lhe incomoda no meio literário?
F.P. (fofocas e perfídias).

Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Cruz e Sousa. O racismo no início e o equívoco interpretativo cometido pelo movimento negro mais tarde quase destroem a literatura de um dos maiores escritores brasileiros (mas já está havendo uma reabilitação do genial simbolista).

Um livro imprescindível e um descartável.
Madame Bovary, de Flaubert, e, como descarte, todos os livros de autoajuda.

Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
rasc

Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Qualquer tema que visasse, conscientemente, alterar a ordem moral ou histórica do leitor visto como um bobinho. Mas a literatura denuncia sempre as representações ideológicas que aparecem na linguagem comum, como clichês, preconceitos, ideologias, dogmas, etc.

Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Canto? Meu cantinho ou minha música? Se for meu canto é o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, o único universo que existe. Se for música, hoje foi I put a spell on you, do Creedence, outro dia foram os Beatles, Stones, Chico, Gil, Caetano, Paulinho da Viola, outro ainda The Cure. Em horas introspectivas, Beethoven e Chopin misturados com Villa Lobos. Eles estão todos ali quietinhos no Menino oculto.

Quando a inspiração não vem…
Se trabalhar e suar e se angustiar, ela vem. A voz interior surge do nada, cavernosa, ditando regras e passando sabão na gente.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
O Graciliano autor do S. Bernardo, talvez o maior romance da literatura brasileira, junto com Brás Cubas, do Machado, e Grande sertão, do Rosa.

O que é um bom leitor?
 O que se deixa levar pela onda da narrativa. Daí ele vai entender que a literatura é sinônimo de liberdade, já que ela traz para o palco iluminado a ilusão consentida. Me lembrei do Nelson Rodrigues sobre o dinheiro: o dinheiro compra tudo, até amor sincero! A literatura também.

O que te dá medo?
Medo de acordar e não ter mais utopias.

O que te faz feliz?
Construir algo que seja menos a singularidade do eu e mais a libertação da palavra e do desejo de todos.

Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
Certeza de tentar construir personagens que buscam caminhos para chegar à medula do leitor, de penetrá-lo, de revelar os seus segredos mais íntimos. Operar no sentido desse desnudamento é uma certeza. Mas conseguir isso é sempre a dúvida.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Estar seguro de ter conseguido “sair de mim”. De criar um narrador que não está nem aí para os meus interditos do dia a dia.

A literatura tem alguma obrigação?
Ela tem obrigação só com ela própria.

Qual o limite da ficção?
A ficção não pode pretender dar lições de moral e não pode pretender estar dizendo a verdade. Essa é a linha demarcatória da arte literária que não pode ser ultrapassada. Passou daí não é mais literatura.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Shakespeare.

• O que você espera da eternidade?
Já vivemos nela. Fenômenos inexplicáveis da condição humana são os mesmos de sempre. A gente busca nos mitos fundadores alguma explicação para o presente e para o futuro. Nessa procura a gente já se coloca de forma atemporal.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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