O esboço de um livro

Resenha do livro "O bibliotecário do imperador", de Marco Lucchesi
Marco Lucchesi, autor de “O bibliotecário do imperador”
02/05/2014

O objeto livro é a principal plataforma (ao menos ainda) para a publicação da literatura. Contudo, qual seria a máxima relação entre um livro e uma obra literária? Não digo um entrar com o entorno e as páginas e o outro com o conteúdo, isso já é o que acontece. E se dados vitais do texto estivessem no ISBN ou na ficha catalográfica? E se a ilustração da capa ou as inscrições da lombada contivesse informações essenciais para que a história seja entendida? E se um detalhe fundamental sobre o cenário, algo que explica muitas das ações dos personagens, estivesse naquela última página, no meio do “este livro foi composto em papel x para a editora y e impresso na gráfica h no outono do ano tal”? Mais, e se o tipo de papel estivesse diretamente relacionado com o enredo? Estaríamos indo além da literatura, conciliando a arte com o objeto livro em uma simbiose total.

Faço essas perguntas provocado pela leitura de O bibliotecário do imperador, de Marco Lucchesi. Não que a obra apresente alguma dessas “contravenções”, mas um ponto me levou à divagação. A história começa com um prefácio do revisor. Prefácios são comuns, mas, de revisores, bastante raros (para falar a verdade, nunca tinha visto nenhum). Mais, ao final, não há assinatura do prefácio. Ainda mais, o prefácio é precedido por um “1” bem grande, iniciando a contagem dos capítulos. Ou seja, o espaço destinado ao comentário que antecede a obra foi incorporado à narrativa. Pode não ser a coisa mais original do mundo, mas é algo bastante raro — o que é bom, convenhamos.

Nele, o revisor, que assume pouco entender de literatura moderna, faz algumas ponderações ao livro que está por vir. Compara a obra com outras que cansou de revisar, afirma que ela não tem foco e está alicerçada sobre terreno incerto e movediço, diz que o autor “não entende quase nada sobre muita coisa”. Como se quisesse desencorajar o leitor — a quem faz elogios protocolares —, dispara: “Descobre-se que o livro, que antes parecia um rio caudaloso, não passa de um logro, de um simples riacho, quase sem água. Tentei preveni-lo [o autor], mas sua vaidade não permitiu sequer uma troca de palavras”. E termina com uma frase típica dos saudosistas: “Sinto saudades dos escritores antigos, dos que sabiam tecer uma narrativa densa e ao mesmo tempo ágil”.

Essa intromissão do suposto revisor tem desdobramentos ao longo da obra. Em diversos momentos, o narrador procura se justificar para o revisor. Um exemplo: “E se me perco em devaneios, meu bom Revisor, se não vou direto ao ponto é porque não achei infelizmente o esqueleto de Inácio [o alvo da investigação que deveria mover a obra]”. Se não bastasse, em algumas oportunidades o revisor se torna um intruso e volta para discutir, por meio de notas de rodapé.

A ideia até que é boa, mas a execução não funciona bem. Primeiro porque, no prefácio, o que o revisor-personagem escreve soa como uma justificativa, um mea-culpa do autor pelo o que está por vir. Segundo, porque as discussões ao longo do texto são forçadas e inverossímeis. Não faz sentido autor e revisor discutirem durante a narrativa, da mesma forma que não faz sentido um revisor atacar o autor no livro deste, com aval até mesmo do editor. Soa inverossímil. Ao final, o intrometido acaba sendo um fantoche para que o autor consiga chamar a atenção para alguns momentos da história, como se utilizasse esse personagem para poder comentar e dar alguma complexidade ao seu próprio texto a partir de pontos de vista conflitantes.

Alguma razão para o revisor
Mas a obra de Lucchesi não se resume a essa questão, é claro. O bibliotecário do imperador é uma espécie de busca pela história de Inácio Augusto César Raposo, responsável por cuidar dos livros de dom Pedro II. Para tentar reconstruir a vida de Inácio, o narrador vai em busca de vestígios que mostram a relação do personagem com o objeto livro. Contudo, o sucesso é parco e o texto resulta numa espécie de biografia ficcional frustrada, apenas com um tatear da história, como um esboço da pessoa que teria sido Inácio. O próprio narrador/pesquisador define bem o rastro daquele que norteia o seu trabalho: é um “personagem à procura de um autor, porque precisa contar sua própria vida, como no drama de Pirandello, vestido de preto, náufrago de sua geração. E, no entanto, desapareceu de repente, como um fantasma, obrigando-me a persegui-lo nas raras pistas que encontrei”. Pistas que foram insuficientes.

Essa busca frustrada, ancorada principalmente em documentos e cartas que aparecem aos montes (empobrecendo a narrativa), acaba por fazer com que o narrador pegue raiva de Inácio, o que rende alguns bons momentos, como o próprio narrador supondo que o “biografado” deixou parcos rastros apenas para que sua história não pudesse ser contada no futuro. “Vejo-me aborrecido com sua decisão de deixar a cena, pouco antes do fim do ato, longamente planejado e consumado, sem aviso prévio, fora de enredo, a produzir graves resultados ficcionais, trajando terno escuro, chapéu e casemira. Como se de mim suspeitasse, digamos, cem anos antes, e mais obstinado se mostrasse, e foragido, nas dobras do tempo, despistando sempre, apagando as provas, assaltando afrontosamente os bolsos do futuro”.

Ao final, em um dos momentos mais interessantes do livro, Inácio aparece para discutir com o narrador, chamando-o diretamente de Marco Lucchesi. Não fica claro como o fenômeno metafísico se dá, mas ele resulta em um excelente diálogo no qual o biografado reclama do biógrafo por ter transformado parte de sua vida em um livro, o que nos remete à discussão de quem possui os direitos de uma história, da legitimidade de se narrar uma vida alheia sem que o objeto de inspiração e pesquisa autorize o escritor para tal.

Não bastasse o revisor, o protagonista da história também não gosta da obra composta por Lucchesi, que é um livro razoável, com alguns bons momentos, algumas máximas interessantes (como “A biografia de um homem de livros encerra uma contradição. A vida e o livro são inimigos ferozes. Viver no seio da biblioteca reflete o isolamento de um bibliopata”), mas nada muito além disso, nada marcante. Vendo como o autor se utilizou de elementos em sua narrativa para, a todo momento, defender a obra, fico na dúvida se até mesmo Lucchesi não teria ressalvas a fazer sobre O bibliotecário do imperador.

Contudo, para não ser injusto, ao final fiquei com outro pensamento: o que acontece com a história das pessoas comuns depois que elas, os amigos e parentes próximos se vão? Nós morreremos de verdade, definitivamente, quando mais nenhuma história sobre nós é contada ou lembrada. Então, se nossa vida está num livro, há uma chance a mais de continuarmos a viver. É algo para se pensar mais a fundo, discutir comigo mesmo — às vezes o Rodrigo e o Rodrigo se pegam feio aqui na mente — e, quem sabe, abordar em um texto futuro.

O bibliotecário do imperador
Marco Lucchesi
Biblioteca Azul
112 páginas
Marco Lucchesi
É poeta, tradutor e ensaísta. Dentre outros, é autor de O dom do crime e A memória de Ulisses. Já venceu duas vezes o Prêmio Jabuti e ocupa a cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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