Calvino e a rapidez

Ando desconcentrado, e me repreendo a toda hora por essa falta de concentração, que se assemelha à preguiça
02/05/2014

Ando desconcentrado, e me repreendo a toda hora por essa falta de concentração, que se assemelha à preguiça. Minha escrita anda fluida, sai rápido — parece se desenrolar em uma velocidade maior que a de meu pensamento. Isso é bom, mas isso me assusta: parece que não sou eu que escrevo, que alguém escreve em meu lugar. Parece que corro em desvario e, apesar disso, me arrasto. Lembro-me, então, do célebre ensaio de Italo Calvino sobre a rapidez. Retorno a ele, na esperança de uma luz. Algo que se não explique, pelo menos situe esse fluido em que me vejo perdido — mas também me encontro.

Lembra Calvino de Mercúrio e de Vulcano, dois deuses potentes, mas complementares. Mercúrio é o deus da sintonia, da participação no mundo. Do derramamento. Vulcano, ao contrário, o deus da focalização, do foco, da concentração construtiva. Ambos agem enquanto escrevemos. Um nos puxa para um lado, outro nos puxa para outro — ambos estão ali. “O trabalho do escritor deve levar em conta tempos diferentes: o tempo de Mercúrio e o tempo de Vulcano”, alerta Calvino. Forças opostas, que travam uma luta contínua — e essa luta é a escrita.

Não, não devemos dispensar a presença de nenhum dos dois deuses enquanto escrevemos. A concentração de Vulcano é condição necessária para as aventuras e metamorfoses de Mercúrio. A mobilidade e agilidade de Mercúrio são condições necessárias para que o trabalho de Vulcano ganhe significado. Precisamos das duas forças, uma que nos arrasta para a caverna, outra que nos derrama sobre o mundo. Precisamos de ambas para escrever. Se me sinto fluido (Mercúrio) é porque, de alguma forma o desejo de concentração também atua dentro de mim. Um se destaca: vai à frente. Outro se arrasta, mas não perde o passo.

Mercúrio, nos lembra Calvino, é o deus da sintonia, da comunicação, aquele que está sempre “entre” duas coisas. Vulcano, ao contrário, é o deus da caverna, do recolhimento, da fabricação solitária. O primeiro promove a continuidade indiferenciada (derramamento), o segundo promove o isolamento egocêntrico (esquizofrenia). Ambos atuam enquanto escrevemos, e escrever é o resultado da luta entre essas duas tendências. Uma não existe sem a outra. Sem o desejo de recolhimento não existe derramamento. Sem o derramamento, não existe o desejo de recolhimento. São como que avesso e direito de um mesmo impulso.

Para ilustrar essa convivência necessária, Calvino nos conta uma lenda chinesa, a história de Chuang-Tsê, o grande desenhista. O rei lhe pede que desenhe um caranguejo. Ele diz que, para isso, precisa de cinco anos e de uma casa com doze empregados. O rei lhe dá o que pede. Passados cinco anos, o rei o procura novamente e ele diz que precisa de mais cinco anos e de outra casa com doze empregados. Ao fim dos dez anos, o rei, persistente em seu desejo, o procura mais uma vez. Então, Chuang-Tsê, em um segundo, desenha o mais perfeito dos caranguejos. E dá ao rei, que agora — porque contou com a ação das forças opostas — enfim tem o que deseja.

Sem a lentidão (derramamento, rascunho, transe) não chegamos à concentração (obra). Sem o desejo de concentração, não faz sentido nos entregarmos à lentidão e à dispersão. Um dos lados não existe sem o outro. Este é apenas um dos paradoxos que ilustram o universo da escrita. Penso nos argumentos de Italo Calvino e já me sinto um pouco melhor. Um pouco menos “torto”. Se derramo facilmente uma escrita que me ultrapassa, é porque uma força oposta, de concentração e foco, me espera no final. Elas só existem por contraste, só por contraste nós as percebemos.

Agora, enfim, posso me derramar melhor, sem o medo de me perder. É como alguém que, ao arrastar um guarda-sol, arrasta também sua sombra. Impossível pensar em arrastar o guarda-sol sem que a sombra seja levada junto. Do mesmo modo, não devemos nos assustar se nos flagramos em uma atitude extrema, porque a outra — que é o seu oposto — também está ali.

O texto Calvino e a rapidez foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, de O Globo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho