Out to sea
It’s the only place I honestly
Can get myself some peace of mind
You know it’s getting hard to fly[1]
Escrever sobre Herman Melville é tratar de um autor cuja literatura se confunde com a ideia de obsessão. Isso se deve em parte à obra-prima desse autor norte-americano, nascido em 1819 e morto em 1891. Moby Dick não é o primeiro livro de Melville, mas, certamente, é a ficção que coloca o escritor no panteão dos grandes não apenas da literatura do século 19, mas o posiciona como um clássico, um autor para além do seu tempo. Nesse sentido, os críticos não economizam na apreciação que fazem de Melville. De um lado, o escritor nascido em Nova York é mencionado como nome elementar das narrativas de aventura, e mais uma vez Moby Dick é citada como referência tendo em vista a saga vivida pelos personagens na captura da famigerada baleia branca; de outro, há quem mencione o autor e seus livros com o propósito de ali demarcar uma tradição literária própria daquele período — quando essa leitura é levada a cabo, Melville se transforma num autor superestimado, que tratou de um tema só: os homens no mar, nada além disso.
Como todas as sínteses, no entanto, essa não consegue capturar a relevância significativa de Herman Melville para a história da literatura. O cerne da questão, com efeito, reside na maneira como Melville é lido hoje, como um autor obcecado pelo mar, assim como o personagem de Miguel de Cervantes era atraído pelas histórias de cavalaria. Melville não é o Cavaleiro da Triste Figura, a despeito de algumas de suas narrativas, mormente as da primeira fase de sua carreira, serem reproduções das experiências do autor no mar, como Typee e Omoo, publicadas em 1846 e 1847, respectivamente. Ainda assim, sua vida burguesa daria um romance. Filho de uma família abastada, Melville amargou circunstâncias adversas, mais precisamente: a morte do pai e a súbita pobreza da família. Sem formação universitária, partiu para o mar aos 19 anos. A literatura de Melville, no entanto, tem mais do que esse tom memorialístico envenenado com algum estilo; em linhas gerais, seus textos permitem contemplar a emergência do mal obscuro, possível de ser vislumbrado graças à observação e à reflexão arguta da realidade, resultando numa narrativa moralista que se confunde com a ideia da luta permanente do bem contra o mal. Enquanto o narrador apresenta o resultado de gestos nefastos pelos personagens, os leitores compreendem como a vida pode ser traiçoeira como o mar.
Antes de chegar a esse tema, especificamente, vale muitíssimo a pena entender como é que, do ponto de vista literário, Herman Melville conseguiu esse feito. Em verdade, sua obra se fundamenta no equilíbrio perfeito entre a literatura de aventura e a reflexão oriunda das memórias dos protagonistas e narradores de suas histórias. Concebida num momento em que o romance havia se consolidado, ao menos do ponto de vista formal, como estrutura narrativa dominante, a obra de Melville se destaca por extrapolar as convenções estéticas vigentes porque consegue imprimir à sua experiência de vida um sabor literário que vai além da mera elaboração estética.
Com efeito, atualmente, a fortuna crítica da literatura norte-americana enaltece Melville como um dos founding fathers das letras dos Estados Unidos. Ao lado de Nathaniel Hawthorne, autor de A letra escarlate, e de Edgar Allan Poe, a ficção de Melville simboliza o temor de quem se vê separado e sozinho contra um mundo hostil e em desalinho, alguém, enfim, que está à procura de um sentido e de um ethos em uma terra desconhecida. Na faceta mais desconhecida de sua prosa (os ensaios), o autor exorta aos escritores de seu tempo a buscar originalidade no estilo com o propósito de criar uma separação para com a literatura inglesa em particular e europeia em geral[2]. Na obra do autor de Moby Dick, isso está representado na busca por um essencialismo, algo correlato à intenção ingênua e ao espírito despreocupado dos homens antes de suas experiências definitivas. Os romances, com isso, não trazem histórias românticas; antes, esboçam uma comunicação de mensagens sofisticadas e sutis sobre um mundo que esbravejava ao seu redor.
Redescoberto
Em linhas gerais, é o que se lê em histórias como Billy Budd, um relato próximo do que se poderia qualificar como “tragédia de erros”. Nesse texto, o jovem Billy Budd é alvo de um misto de inveja e perseguição do Contra-Mestre John Claggart. Por um motivo a princípio igualmente obscuro e poderoso, Jimmy Leggs, como é conhecido o Contra-Mestre, desenvolve um sentimento de profundo ressentimento em relação a Billy Budd. Como resultado, é acusado por um crime e o desfecho dessa história só poderia mesmo ser catastrófica, como um enredo sem final feliz ou mesmo redenção. Mais estranha do que essa história de Billy Budd, livro que só seria publicado em 1924, quando Herman Melville foi “redescoberto” nos Estados Unidos — veremos mais a respeito disso ao fim do texto. Na avaliação de Otto Maria Carpeaux, conforme o ensaio publicado na História da Literatura Ocidental, alguns “leitores românticos, gostando da sua obra como documento do tempo em que os veleiros americanos navegavam pelo pacífico”, guardaram interesse pelo autor. Mas a sua redescoberta se deveu à leitura acentuada das aventuras do capitão Ahab em Moby Dick.
Moby Dick sempre será identificado como a história de um homem, o capitão Ahab, obcecado por sua baleia branca. Muito antes de a ciência estabelecer um estudo sofisticado sobre o tema (a obsessão), a narrativa literária de Melville já havia dado o recado sobre os seus perigos e seus efeitos. Ishmael é o narrador e, com ele, o leitor descobre um universo apartado da realidade comum não apenas porque existe um novo contexto geográfico em questão (a justaposição terra/mar), mas, principalmente, porque são desenvolvidos novos códigos de conduta, forjados a partir de novas reações e de um comportamento totalmente diferente. A estrutura da história é interessante, nesse sentido, porque, sempre junto ao narrador, somos apresentados às especificidades daquela realidade, que possui outro significado dentro do navio — com outras palavras, esta mesma mensagem também é trabalhada em Billy Budd, quando o narrador sugere que existem determinados comportamentos e gestos que só são possíveis no mar.
Outro aspecto que chama a atenção em Moby Dick é a presença do sagrado em diversas passagens da história. Prova disso é a menção ao Sermão do Padre Mapple, logo no começo do romance. Não é aleatoriamente que Melville dedica, logo na primeira metade do livro, um capítulo inteiro para o levantar, o falar e o abençoar do religioso, que, por sua vez, traz uma interpretação da palavra que destaca a onipresença de Deus, utilizando como texto de referência a desventura de Jonas, aquele que tentou escapar das orientações do Senhor. E nas considerações finais de sua mensagem o Padre questiona a validade da vida humana distante dos desígnios do Todo-Poderoso. A menção a Jonas não acontece por acaso, do mesmo modo que aquele Sermão, conforme observa Edmund Wilson no ensaio O aprimoramento da prosa americana, é uma das partes essenciais do romance. Apontando a importância desse estilo, Wilson assinala que a moral é incorporada à narrativa ou ao poema. Em outras palavras, é como se a própria narrativa assumisse um tom de correção ou de vaticínio, relembrando ao leitor que o mal está à espreita, buscando uma brecha para poder entrar.
Ao longo do romance, essa precaução acerca do mal assume um caráter mais definitivo: a besta em si é a indomável natureza, que impõe à vida um tom determinista e sombrio, numa alegoria que poucos escritores foram capazes de conceber de forma tão absoluta. A grandiosidade de Moby Dick, portanto, não está no desfecho ou na busca inconsequente por uma conquista que parece além do nosso alcance; a história é impactante porque denuncia a nossa incapacidade diante de uma força infinitamente superior. A baleia é a prova de que existe certa repetição no modus operandi dessa demonstração de força do sagrado. E que as consequências ao enfrentar a força da natureza ainda permanecem desconhecidas.
Ainda que sua influência junto à literatura universal seja para lá de reconhecida, como atesta Harold Bloom em Gênio — os 100 autores mais criativos da História da Literatura, a publicação de Moby Dick marcou o início de uma série de reveses na trajetória de Herman Melville como escritor e também na sua vida particular. Em relação a esse último segmento, o término de seu relacionamento com Nathaniel Hawthorne, para quem o romance da baleia branca é dedicado, é certamente um deles. O desarranjo desse relacionamento não pode ser minorado exatamente porque é graças a Hawthorne que Moby Dick alcançou tamanho relevo no tocante ao estilo. Ao que parece, o autor de A letra escarlate serviu como uma espécie de mentor, numa dinâmica que acabou por se transformar em dependência de Melville para com Hawthorne.
Imoralidade
Além do distanciamento do amigo, Melville enfrentou outra reação ainda mais drástica por conta do romance Pierre, livro que, para a recepção crítica da época, se destaca pela imoralidade narrativa. Na obra, o protagonista, Pierre Glendinning, forja um esquema para ficar com Isabel Banford, uma jovem misteriosa que, conforme descobrimos depois, vem a ser sua meia-irmã, filha bastarda de seu pai com uma forasteira europeia. Outra vez com apelo sombrio, a história se aproxima de um estilo realista mais cruel, no qual os ardis para a construção de um relato ainda determinam uma reação ao mesmo tempo racional e mesquinha, deixando de lado toda e qualquer idealização. Aqui, como artista, Melville trai as expectativas de seu público na exata medida em que escapa à solução simplória do senso comum, dando ênfase a uma mentalidade mais perversa e, talvez por isso, nem sempre revelada. O desvio de caráter, nesse sentido, é considerado tamanha afronta que, de acordo com seus biógrafos, Melville preferiu as narrativas breves aos romances dali em diante.
Nos contos, todavia, o interesse de Melville pelo mar não parece ter se alterado, e o exemplo elementar disso está no texto Benito Cereno, publicado no livro The Piazza Tales, em 1856. Remontando a um acontecimento do final do século 18, o conto traz a história de como Benito Cereno se passa por capitão de um navio quando, na verdade, está sob as ordens de um grupo de celerados que tomaram o navio de assalto. Com esse enredo, muito da recepção dessa história analisa a obra como um libelo a favor e contra a escravidão — dependendo muito da ideologia professada pelo comentarista.
Na ficção de Melville, no lugar de precisão para com o relato histórico ou mesmo interpretação à luz da sociologia, o que temos é a imaginação do autor trabalhando em larga escala. Novamente aqui, o tratamento da narrativa aponta para um entendimento sombrio acerca do que é demasiadamente humano. A história de Benito Cereno revela a conversão dos homens em selvagens na contramão de quem idealiza o outro por suas bondades naturais. Em Melville, o que se lê é o comportamento agressivo de um grupo que não pode ser controlado ou sequer compreendido a partir dos pressupostos vigentes da civilização. É o mal em estado puro, que pode alcançar até mesmo aqueles por quem nutrimos pena por sua condição de explorado. De acordo com esse cenário, sempre que houver a oportunidade, a natureza perversa se manifestará ao contrário de uma bondade ingênua daqueles que consideramos primitivos.
É nesse aspecto que a disputa do bem conta o mal ganha corpo na obra de Melville. As questões existenciais que envolvem os personagens criados pelo autor enfrentam dilemas éticos que traduzem a dor do aprendizado através da experiência cotidiana, isto é, as relações se mostram mais complexas do que a aparência sugere, de modo que o público se surpreende com a solução, frequentemente trágica, para os problemas ali apresentados. Nesse tipo de disputa, a prosa do autor arrasta a audiência para o lado do bem; ocorre que a subversão dos acontecimentos provoca quase sempre a reação que é a indesejada, contrariando, assim, as expectativas de quem ansiava pela resolução tranquila desses problemas.
De acordo com Melville, a consciência jamais estará em paz, e a contraprova disso é a memória que não deixa o narrador esquecer as experiências traumáticas. Curiosamente, é apenas no mar que o autor parece encontrar a paz necessária para uma vida plena; é lá que os seus personagens encontram alguma tranquilidade de espírito para refletir e purgar as aventuras pelas quais passaram ao longo de sua vida. Engana-se, por esse motivo, quem observa a literatura de aventura tal qual apresentada pelo escritor norte-americano como um escapismo barato ou uma forma bruta de entretenimento. Existe, sim, grande diversão ao lermos Melville, porque as peripécias de suas histórias parecem não ter fim; ocorre que, como ônus, somos levados para um cenário mais amargo e cruel, desses que se mostram como a melhor expressão da angústia.
E mesmo quando a narrativa do autor estava fora do mar a dinâmica existencial se fazia presente. Em Bartleby, o escrivão, Melville expõe um breve relato sobre a agressividade silenciosa das obrigações. Num escritório em Nova York, um advogado bem-sucedido contrata um assistente para auxiliar nas tarefas burocráticas. Tudo aparenta estar na plena tranquilidade, quando, sem motivação evidente, este outrora funcionário prestativo reage às demandas do trabalho com um sucinto e cortante: “Prefiro não fazer”. Numa obra de estilo tardio, Melville expõe talvez o seu próprio desconcerto com o mundo. Conforme aprendemos em sua trajetória, depois de regressar a Nova York, Melville trabalhou como fiscal da Alfândega por 19 anos, num período em que sua chama criativa sequer era lembrada.
Bartleby, o escrivão pode ser lido como uma alusão involuntária a esse momento. Prosa enxuta, com estrutura simples, o livro é um poderoso ajuste de contas para com a discussão do livre-arbítrio, do poder e da moral. Afinal, sugere o livro, até que ponto devemos obedecer às obrigações que afrontam a nossa consciência? Até que ponto é necessário justificar de forma racional as nossas decisões, sobretudo aquelas que jamais serão compreendidas porque representam uma afronta ao mundo como está aí? Melville traz sua resposta de forma cifrada, numa alegoria acerca da influência do mando para com algumas decisões que, de tão complexas, transformam-se em questão de vida ou morte para os envolvidos. Na ilustração concebida pelo autor, tal como o narrador, os leitores são espectadores espantados com as reações de um personagem, Bartleby, que age de forma inesperada.
Coragem
Seja em histórias mais breves como esta, seja em relatos mais densos e sofisticados como Moby Dick, o que o leitor tem em mãos com Herman Melville é a força de um autor determinado a expor sua visão de mundo em forma literária, certamente vaidoso de sua condição como artista, mas que entendia qual deveria ser a sua função como artista, a saber: mostrar como era possível ao ser humano inventar a si mesmo em condições adversas, porque os códigos e as informações que ele possuía anteriormente não serviriam mais no momento em que ele deveria enfrentar essa nova máquina do mundo. Há, com isso, uma progressão temática, para além de estética, na literatura de Melville: quer nas aventuras com selvagens na sua ficção inicial de Typee, quer no desencanto com o mundo no estilo tardio de Billy Budd, passando, claro, pelo seu romance mais conhecido, o que o leitor apreende é a necessidade de ter coragem de não ficar isolado, até porque essa pode ser, sim, uma das consequências imprevistas da liberdade.
Quando, em 1952, o escritor franco-argelino Albert Camus escreve um comentário sobre Melville todas essas características acima listadas são observadas. Só que ele também segue adiante: “podemos dizer que ele escreveu senão o mesmo livro infinitamente recomeçado”. Ao contrário de encontrar nisso um demérito, Camus assinala o lirismo dos escritos do autor norte-americano e o fato de que, em seus livros, crianças e sábios encontram alimento. E é definitivo ao estabelecer a importância de Melville como gênio da narrativa: “O criador de mitos só atinge a genialidade na medida em que os inscreve na espessura da realidade, e não nas fugidias da imaginação”.
A morte de Herman Melville foi registrada em uma nota lacônica pelo The New York Times. Aos 72 anos, o escritor estava longe de participar do jet set literário do seu tempo a ponto de seus livros estarem fora de catálogo desde 1876. A mudança dessa trajetória de ostracismo contínuo só começou a ser revertida em 1921, quando o professor Raymond Weaver ajudou a reestabelecer a relevância de Melville com a biografia Herman Melville: Man, mariner and mystic. O livro resgata toda a jornada do escritor, da ascensão dos primeiros anos à obscuridade no capítulo final de sua vida. E foi no processo de pesquisa que Weaver teve acesso aos papéis do romancista e descobriu a joia Billy Budd. Essa relevância tardia, que para alguns é a prova incontestável de que a literatura de qualidade conta com o tempo a seu favor, sugere a existência de obras que importam para além das aparências primeiras. No caso do escritor norte-americano, as longas descrições de ambientes e a intensidade da contextualização fizeram dele um autor interessado apenas nos detalhes. Seu grande tema, no entanto, sempre foi a condição humana em circunstâncias extremas.
[1] Lá fora, no mar/ é o único lugar que, sinceramente/ eu posso sentir alguma paz para pensar/ Você sabe, está ficando difícil voar. Trecho da canção I’m outta time, do Oasis, composta por Liam Gallagher.
[2] Esse comentário consta do texto Hawthorne and His Mosses, publicado em agosto de 1850 para a Literary Review.