Os filhos do desbunde

Resenha do livro "O corpo em que nasci", de Guadalupe Nettel
Guadalupe Nettel, autora de “O corpo em que nasci”
01/03/2014

O termo anda em desuso, mas marcou uma época, a era do desbunde, um período que começou lá nos idos de 1960 e somente perdeu fôlego na década de 1990. Chegou a se tornar um estilo de vida baseado em conceito estampado por frases prontas: é proibido proibir; paz e amor; faça amor, não faça guerra. Conhecido como contracultura, o fenômeno nasceu da urgente necessidade de liberdade para quem sobreviveu às guerras impostas pela ideologia dos estados nacionais, daí a prevalência de uma cultura marcada pela permissividade com absolutamente tudo, desde as posturas comportamentais até os posicionamentos políticos.

A geração que fez e viveu o período tentou moldar os filhos como espelhos de suas crenças heterodoxas. O problema estava num ponto central da questão. O conservadorismo, embora estivesse cochilando, não se encontrava de todo morto. O romance O corpo em que nasci, de Guadalupe Nettel, conta exatamente como foi viver no meio deste conflito.

Todo enredo se passa em uma sessão de psicanálise em que a autora vai desfiando para a doutora Sazlavski o rosário de sua vida. Ela, que nasceu “com uma auréola branca, ou o que os outros chamam de mancha de nascimento, sobre a córnea” do olho direito, durante parte da infância foi obrigada a usar um curativo que “tapava o olho esquerdo durante metade do dia”. Além do incômodo, o arranjo provocava a curiosidade e o estranhamento das outras pessoas e, claro, um imenso repertório de piadas desfraldado pelas colegas de escola.

A protagonista e narradora nasceu no México no início da década de 1970 e teve pais liberais em tudo, mas uma avó, que a cuidou na adolescência, capaz de manter acesos os preceitos de uma vida rígida e bem regular. Os pais, que nunca brigavam na frente dos filhos, discutiam com eles todas as questões. Falavam de sexo abertamente, viviam uma experiência de um casamento aberto e, claro, se separaram. Tudo isso diante de crianças que obviamente não tinham maturidade para entender o que se passava em torno.

Depois de separada, a mãe leva a protagonista e seu irmão para a França, enquanto o pai vive como fugitivo nos Estados Unidos e, depois, foi preso no México.

Diante deste roteiro está claro que se trata de um romance de formação. Guadalupe Nettel viveu todas, ou quase todas, as vivências de sua personagem. Há claramente uma busca da autora em retratar as angústias e as inseguranças de uma criança diante do excesso de liberalismo que ela não conseguia apreender. Sobretudo depois de viver sob o domínio de uma avó que, mesmo com suas excentricidades, mantinha padrões de comportamento bem tradicionais. Daí que o romance entra logo num clima psicológico que vai criando suspenses envolventes para o leitor. Como vai parar toda esta batalha? É a pergunta reaberta em cada nova página.

A resposta pode até ser óbvia, sobretudo para quem costuma acompanhar sociologicamente os rituais do final do século passado. No entanto, o discurso na voz de Guadalupe, pelo ritmo com que é dito, instiga o leitor na busca do novo. E ele sempre acontece. O destino final de cada personagem é uma dessas esperadas surpresas. A autora não cai na tentação óbvia de dizer no final o que aconteceu com cada um, mas usa de um brilhante jogo de descrições capaz de transferir o leitor para os dias atuais sem que ele perca o senso de descrição histórica que marca a narrativa como um todo.

Este discurso também ganha força por sua linguagem perfeitamente corriqueira. Quem o lê não consegue encontrar em Guadalupe um refinamento beletrista. O tom é de crônica. E isso dá mais força, salienta mesmo o clima psicológico que se espalha por todo enredo. As guerras íntimas dos personagens é o grande interesse da escritora, enfim.

Estas batalhas estão em momentos que podem até passar despercebido, como nos únicos dois beijos que a protagonista ganha da avó. Ou em instantes mais óbvios, como quando ela assiste aos pais de duas amigas trepando no meio da sala. Para a menina aquilo estava bem próximo de uma briga, embora a mãe a tenha dito que fazer amor era algo tão bom quanto comer chocolates.

O corpo em que nasci fica, então, como um romance que questiona os limites da liberdade. No entanto vai além ao questionar o verdadeiro valor da liberdade, como ela deve ser utilizada e quais os traumas que pode trazer. No final todos têm uma ferida a ser curada, mas sempre falta o sedativo mais indicado.

Naturalmente que não estamos diante de uma tragédia grega. Tudo aqui tem cores leves, embora as marcas sejam profundas e incuráveis. O que importa afinal é que num excelente texto Guadalupe Nettel nos ensina que o desbunde promoveu o liberalismo sim, embora no final tenha instigado o fortalecimento do conservadorismo. Ou seja, nunca de fato fugimos das linhas de contradições que nos formam.

O corpo em que nasci
Guadalupe Nettel
Trad.: Ronaldo Bressane
Rocco
222 págs.
Guadalupe Nettel
Nasceu na Cidade do México, em 1973. Viveu em Paris, Barcelona e Canadá. É autora de três livros de contos, dentre eles Pétalos y otras historias incómodas, vencedor do prêmio Antonin Artaud e do Prêmio Nacional de Literatura Gilberto Owen, em seu país. Seu romance El huésped foi finalista do Prêmio Herralde em 2005. Colabora com revistas literárias francófonas e hispânicas e recebeu o importante prêmio Anna Seghers na Alemanha.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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