O argentino Alan Pauls apresentou-se recentemente em Nova York em conversa informal sobre a sua obra com Sérgio Chefjec. Ambos fazem parte de uma geração de escritores de vanguarda, que trazem à luz a relação entre a literatura e a autobiografia, seguindo a tendência de autores como o catalão Enrique Vila-Matas. Pauls afirma crer na literatura com a força de uma religião e dá como exemplo o caso de um amigo, escritor novato, que às vésperas de um concurso literário deixou de acudir a noiva suicida para terminar o seu manuscrito. Em 1984, Pauls publicou O pudor do pornógrafo, novela epistolar que trata deste fanatismo, esta atitude praticamente “talibã” com relação ao ofício da escrita. Entretanto, Pauls, que pertence a uma família de artistas, já foi professor de Teoria Literária na Universidade de Buenos Aires e é também roteirista, crítico de cinema e ator (no filme Cassandra [2012], ele interpreta um editor em busca de um protagonista).
Aclamado por Roberto Bolaño como “um dos melhores escritores latino-americanos vivos”, Pauls é autor de O passado (2003), romance ganhador com o Prêmio Herralde 2003, a trilogia História do pranto (2007), História do cabelo (2010) e História do dinheiro (2013), do ensaio A vida descalço (2006), dentre outros livros de ficção como a novela breve Wasabi (1994) e ensaios diversos. O romance O passado foi adaptada ao cinema por Hector Babenco. O pudor do pornógrafo (1984) receberá nova edição este ano na Argentina.
• Para você que vivencia a transição entre dois séculos, o que significa ser um autor do século 21?
Não sinto que eu seja um autor mais do que século 21 do que do século 20, ou dos séculos 19 ou 18 (citando apenas os meus séculos preferidos). Tenho uma grande vocação para o anacronismo, o que eu gostaria que significasse que quando escrevo posso ser contemporâneo ao mesmo tempo de literaturas muito próximas e muito remotas. Além disso, continuo pensando que contemporaneidade é uma relação inventada pelas literaturas, não pelos escritores.
• Esta “síndrome de mitologização hiperpersonalista” que você menciona em um artigo recente sobre a exposição Bolaño em Barcelona traz algo de positivo para o escritor contemporâneo?
A possibilidade de aproveitar esta visibilidade mediática e converter-se em um performer. Conheço alguns muito bons. Mario Bellatín, por exemplo.
• Em seu ensaio A herança de Borges (2010), você cita que para Borges “um clássico é o que uma nação, ou um grupo de nações, ou o tempo, decidem ler como se nas suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e suscetível a interpretações infinitas.” Em quais livros de autores contemporâneos você apostaria como futuros clássicos?
Lorde, de João Gilberto Noll; Um episódio na vida do pintor viajante, de César Aira; A novela luminosa, de Mario Levrero; Meus dois mundos, de Sergio Chefjec; Peripécias do não, de Luis Chitarroni.
• Como “carioca”, logo me senti atraída por A vida descalço, um ensaio sobre a praia. Ao refletir posteriormente sobre a leitura, lembrei-me do que me disse um médico dermatologista em consulta recente: “Durante anos, você sofreu um estrago solar enorme na sua pele”. A praia, a inclemência climática, as experiências de vida desde a infância até a vida adulta, o conjunto de uma vida descalço na areia é como ser marcado a ferro?
Pode ser. Valéry dizia “o mais profundo é a pele”. E Severo Sarduy tem um belo texto no qual lê as cicatrizes que tem no corpo como pistas para uma possível autobiografia.
• Você diz que escreve para exorcizar um tema, ir até a última gota. Isso funciona? Existe uma última gota enquanto ainda se vive?
Não acredito que a literatura exorcize nada. Eu sou obsessivo e quero cavar o mesmo poço a fundo simplesmente porque não posso fazer outra coisa. Mas estou condenado à decepção: se existe algo impossível é ter “a última palavra”.
• Escrever é para você um exercício físico, uma rotina diária?
É físico, mas se exerce com e em um corpo que não é exatamente o corpo biológico que age e sofre com o resto das coisas. É uma espécie de “duplo do corpo” que possui os seus próprios ritmos, a sua sensibilidade, a sua própria resistência, e tão logo se encontra com o outro, o biológico; ao anoitecer, quando os dois se sentam na sala de fumo e conversam sobre o que fizeram durante o dia.
O que me fascinou em Brasília é que é uma cidade-tempo. Todas as cidades são históricas, mas poucas encenam o caráter irremediavelmente histórico (quer dizer: o passado) do futuro como Brasília.
• Em O passado, há uma digressão bastante comentada. Você acha que o escritor tem o direito de se divertir tanto quanto o leitor?
Não se trata de o escritor ter o direito ou não de divertir-se. Sem digressão não existe novela. Assim simples. Desde Dom Quixote, ir pelos galhos sempre foi a marca que distingue o gênero.
• Qual a liberdade que você gosta de dar ao seu leitor? Busca desestabilizá-lo?
Oferecer ao leitor uma “experiência múltipla”, como os parques de diversões e as drogas do futuro?
• Para escrever sobre um tema delicado como a política, você sugere que é preciso encontrar uma pista, uma chave que abra a possibilidade de inserir tema à obra ficcional. O que você diz da literatura tradicional russa como emblemática desta fusão política/ficção?
Não sei a que “literatura tradicional russa” se refere. Tolstói? Gorki? Solyenitzin? (Para mim o único russo que entendeu algo da relação entre política e literatura foi Trostsky.) Acredito que a questão chave, como sempre, é a da perspectiva, a posição na qual se coloca a câmera, o modo de enquadrar. Se o escritor não fundamenta estes problemas, é muito provável que repita — com palavras mais ou menos belas, mais ou menos eficazes — os libretos — quem são os heróis, quais foram as suas ações, em qual gênero se deve relatar um acontecimento ou um processo, etc. — o que a história, a política ou os meios já forneceram antes.
• Presenciamos um “revival” dos anos setenta na América Latina, avançamos ou retrocedemos? Qual a “onda” que nos leva?
Não acredito que a história seja linear e progrida, de modo que não me preocupa muito se retrocedemos. Sou leninista: “um passo adiante, dois para trás”.
• Nos seus romances, os personagens se educam? Ou buscam educar-se?
Acredito que basicamente sofrem e são martirizados. Alguns — poucos — aprendem algo, mas nunca alcançam colocar o aprendizado em prática, porque no romance seguinte o canalha do escritor decide prescindir deles.
• Em sua apresentação, você fala que, aos leitores, interessa o amor e o dinheiro. Mas e o sexo?
O sexo não é um verdadeiro interesse: é pura ansiedade. O amor e o dinheiro são vícios muito mais complexos e duradouros. Garantem entretenimento para sempre.
• Nós vivemos num mundo em que o sexo é pornográfico, o amor, doentio e o dinheiro, explícito? Sempre foi assim?
Não me sinto capacitado a responder.
• Quais as armas de um escritor para se defender de um processo autodestrutivo?
As mesmas que qualquer pessoa: um resto de dignidade, um bom psicanalista, amigos perspicazes, filhos.
• Após uma visita a Brasília, você intitulou o seu ensaio El futuro anterior. Quais as diversas facetas do tempo para você?
O que me fascinou em Brasília é que é uma cidade-tempo. Todas as cidades são históricas, mas poucas encenam o caráter irremediavelmente histórico (quer dizer: o passado) do futuro como Brasília.
• Paul Auster lhe disse em uma entrevista que “a claridade é o que há de verdadeiramente subversivo e perturbador”. Você concorda que a linguagem possa alcançar tamanha claridade?
Se há algo perturbador na linguagem, isto é para mim o equívoco, a sua capacidade de produzir mal-entendidos.
• E na batalha entre o esquecimento e a memória, quem ganha?
É uma batalha? Eu diria que é uma sociedade perversa, como as que formam os sádicos e os masoquistas, que nunca gozam tanto como quando estão juntos.