O bando de saqueadores tagarelas (ou sei lá o quê), conversando sem saber da interceptação pouco interessada da Agência, que não se interessava por antiguidades mesmo que fossem as mais velhas do mundo… Como dizem os portugas, isso tinha piada — e vinha transcrito no The Guardian, a chamada esparrenta da capa afirmando que o jornal havia se cercado de todos as garantias da “autenticidade do material de áudio submetido à perícia, etc., etc.” (os ingleses!, cedo no trabalho, escrevendo como se estivessem realmente chochados os filhos: “O que nos faz bem seguros da origem, a partir da idoneidade da fonte e mais a análise técnica do material aqui divulgado com absoluta exclusividade):
— Use a freqüência segura, porra.
— Desculpe. Agora?
— Agora. Pro resto do mundo, só tem iraquiano aí. Onde vocês estão?
— Na sala… acádio-sumeriana, eu acho.
— Acha? Em qual delas? “Acádio-sumeriano” são três.
— Eram. Eles mexeram nelas, pra tentar guardar. Tem umas caixas muito boas, vazias. Não tem nada dentro.
— Podemos até usar…
— Não, não podemos. Tem “Irak Museum”, bem grande. Em inglês e em árabe.
— Então, deixa pra lá. Temos as nossas.
— Uma pena. Estas são muito boas.
— Mas, espere aí. Vocês não terminaram com as salas de Ur, não é possível. Voltem lá, pra ter certeza.
— Tudo da “lista de Ur” já está com a gente.
— A peça “negra” de Woolley, inclusive?
— Também. É uma adaga esquisita.
— Espada. Ou punhal longo, de sacrifício. É isso que está aí?
— É. Mas parece que vai se esfarelar só de pegar nela…
— Não é pra pegar!
— Estamos com as luvas.
— Foi de Abraão, pô. O que você queria?
— Mas fique sabendo: são muito frágeis…
— Alô!
— As duas…
— Alô!!
— É interferência. Tá me ouvindo? Que calor, o ar não funciona.
— Tem muita poeira?
— É, tem. E agora tem mais, depois que derrubamos os capitéis no chão. Alguns espalharam uma poeira fina…
— Vocês estão respirando pó de cinco mil anos, pô.
(Tosse)
— São lindas.
— O quê?
— As coisas de Ur. Os punhais… A harpa com o touro, toda em lâmina de ouro!
— Cuidado com a caixa da harpa, é de madeira.
— E as duas espadas de sacrifício…
— Você disse “duas”?
— São duas.
— Não pode ser. Havia só uma. A de Abraão.
— Tem duas, exatamente iguais.
— Não há cópia, cara. Pouca gente sabia que o museu tinha isso…
— Não falei em cópia. Não tem cópia aqui dentro, eu não sou burro.
— E então?
— Mas encontramos duas. Dois restos de lâminas…
— Woolley só encontrou uma, nas escavações.
— Tem uma legenda, aqui.
— Leia.
— Diz a data, informa o que é… e que “Lawrence encontrou a segunda”.
— T. E. Lawrence?
— Deve ser. Ele trabalhou com Woolley, não?
— Não em Ur. Lawrence trabalhou com Woolley em Carchemish, não sítio das ruínas hititas. Nada a ver.
— Bem, é o que está escrito aqui, “Lawrence encontrou a mais antiga”, e cita: “a espada que conduz à morte, conduz também à pureza”. O que significa?
— Sei lá. Estamos conversando como duas tias velhas, uma em Bagdá e outra no Kuwait, olhando pra mesquitas em forma de cogumelo.
— Temos tempo.
— Não tanto assim. Os outros, estão onde?
— Aqui na sala “acadiana”?
— Quem está nas outras salas?
— O “Moma” e o judeu trabalhando na embalagem das coisas de Ur.
— Se partir a asa de um vasinho sequer, a gente não paga.
— Tamos sabendo.
— E os outros?
— Estão aqui comigo. Vasculhando e conferindo. Moussa está na entrada. Ele fala árabe e está armado.
— Já acharam o “Bocal de Libações”?
— Qual?
— O “Bocal”, de calcário. Foto 16. Todo em relevo, com umas cabeças de animais…
— Ah, já. Os animais inteiros, embaixo, é isso?
— Isso. Terceiro milênio antes de jota cê. Já tem cliente certíssimo. Texano. Pagará o que a gente disser.
— Linda é a estatueta feminina do templo de Abu. Parece uma escultura de Giacometti.
— Ainda mais bonita. Também tem cliente certo…
— Espera um pouco. Parece que…
— Hein?
— […]
— Alô? Alô!
— Oi, cara. É que… teve um acidente aqui.
— O que foi?
— As peças…
— Quais?
— As de Abrãao.
— O que foi, cara? Diz logo!
— Caíram. A gente estava…
— O que foi que caiu? A espada do sacrifício?
— As duas.
— Caíram?! A peça mais…
— Porra, é. Caíram! Aqui tá uma confusão, cara. Tem os iraquianos, também, que ficam enchendo o saco, parece que estão meio arrependidos…
— Os porras estão recebendo muito bem, para fazer a “figuração”. Mas, a espada, cara!, logo a porra do punhal…
— Era só uma lâmina carcomida. Duas, aliás…Viraram quase pó. Muito frágil.
— Que merda. Praticamente foi por elas que montamos o circo.
— Junto os cacos?…
(silêncio do outro lado)