O doente

Trecho do romance de André Viana
Ilustração: Leonardo Lotowski
01/03/2014

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Acho que uma série de motivos me impediria de escrever um livro. Primeiro por questão de distanciamento, que seguramente não tenho. Na verdade, seria o contrário: proximidade excessiva. Depois porque, já começo assim, não vale rir, muitas vezes sinto profunda pena de mim. S. chama isso de síndrome de Cristo. Ele diz que eu sou não a encarnação, mas a encanação de Jesus. Tem sua graça, claro, mas tem também um lado grave porque de certa forma influencia, se não todos, muitos dos meus passos, e eu teria medo que influenciasse minha escrita também, o que inevitavelmente desaguaria em algo piegas, e eu digo isso porque minha escrita já tem uma tendência natural à pieguice.

Por outro lado, essa pena que sinto de mim, toda essa minha autocomiseração, gosto da palavra, autocomiseração, toda essa minha autocomiseração acho que terminei por transformar em excesso de autoconfiança. Como modo de acreditar em alguma coisa, não sei se dá pra entender o que eu quero dizer.

Eu não tenho idéia da medida, se é que essa medida existe, entre autoconfiança e arrogância. Sem dizer que escrever tem outro tanto de egocentrismo, e mesmo se fosse só isso, acho que ainda assim teria vergonha.

É estranho porque acredito seriamente que preciso me justificar de saída, não sei se pra você, que nem me conhece, ou se pra mim, que provavelmente também não me conheço, o fato da gente estar agora, aqui, gravando essa conversa. O que posso dizer desde já é que fico muito agradecido pelo convite. Eu realmente atingi um ponto em que não dá mais pra ficar quieto. A gente vai vivendo, vai cruzando algumas fronteiras, acumulando um monte de idéia errada, chega uma hora em que é preciso expurgar, se livrar do excesso. Existe um tipo de bagagem que não serve mais, mas a gente continua carregando assim mesmo.

Não acredito, nunca acreditei que amigo é o melhor ralo pra despejar nossas angústias. Na verdade, às vezes tenho a impressão de que amigo não tem muito ouvido, ou paciência, ou coragem, sei lá, pra conversar sobre certos assuntos. Tenho alguns amigos que amo, claro, como se fosse família, mais até talvez, mas mesmo assim acho que eu não me.

S. me falou muito bem de você, que você adora ouvir histórias, que tem bom humor também, isso pra mim, humor é essencial, principalmente com as desgraças. Ridendo dicere severum, rindo dizer coisas sérias, é isso. Dos seus textos e reportagens que S. me mostrou, eu vi que você é dessa linha. Deixa eu pegar lá no quarto o livro da minha epígrafe, só um instante.

Aqui, A montanha mágica. Vamos sentar?

Sim, outra coisa importante de dizer: nunca fui chegado a terapia, psicanalista, divã, essas coisas. Acho a situação teatral demais pra acreditar. E ainda pagar por isso. Pagar pra me levar a sério. Mesmo numa conversa de certo modo inusitada como esta, confesso que me sinto muito mais à vontade em falar de mim pra um colega jornalista que se interessou pela minha história, seja lá Deus que personagem S. vendeu pra você, do que pra alguém que vai encostar o ouvido aqui no meu murinho de lamentações e ainda faturar, sei lá, duzentos, trezentos reais depois de uma hora rabiscando a lista de compras num caderninho, enquanto eu ali, pesando se suicídio é fuga ou solução, essa imagem não é minha, é de Nanni Moretti no Quarto do filho.

Li uma vez que a psicanálise não é o melhor meio de se fazer amar. Foi o próprio Freud quem disse isso. Eu acho perfeito. Aquele quadrinho ali na parede, aquele ali, é, vá lá ver. Diz assim: L’amour, c’est pas grave. Sempre li como um diagnóstico clínico. Mais ou menos como “É amor, não é nada muito sério”. Gosto disso. Embora, veja bem, embora Thomas Mann diga, e eu acredito nele, que toda doença é amor transformado.

No fundo, acho que eu não faço, pega aquele cinzeiro ali, por favor, ali, obrigado. Você fuma? No fundo, acho que não faço análise não porque não acredite, mas justamente porque tenho medo do que posso encontrar.

Todo mundo acha que eu preciso de ajuda. Eu também acho que eu preciso de ajuda. Todo mundo precisa de ajuda. Além do mais, minha história. Diz uma coisa, o que você acha de envernizar um pouco o verbo pra gente começar? Eu. Muito bem. Gosto assim, quando não precisa convencer. Pego gelo, copo, você, como é, desliga o gravador ou.

Vamos lá. Se um dia eu escrevesse minha história, ela teria como ponto de partida a morte do meu pai. No dia do meu aniversário de onze anos.

Bom começo, não?

Meu pai viveu doente quase dois anos antes de morrer. Desde o início todo mundo sabia que ele iria morrer. Maktub, estava prescrito. Ele próprio dizia que a morte precisava ser vivida, saboreada, curtida, quer mais gelo? Meu pai adorava descrever pra mim e meu irmão tudo o que sentia, fazia boletins diários, pregava que a doença dele era a parte mais importante da nossa educação, que o corpo são é nosso único bem material, que adoraria se a gente guardasse o que ele tinha aprendido tentando sair da armadilha. Sair da armadilha. Ele usava muito essa expressão. Minha mãe tinha pavor dessas conversas, mas nunca interferia. Saía do quarto toda vez que meu pai iniciava a pregação. Mas eu digo que ele nunca obrigou a gente a nada. O artista é sua plateia, não é assim? Eu e meu irmão, a gente ficava fascinado. A gente se emocionava, sério, a gente chorava de emoção com as descrições dele, sempre enfáticas, virulentas às vezes. Ele falava muito dos cheiros, do gosto, dos sons que a aproximação da morte produzia, nos impressionava profundamente aquela teatralização da doença, eu e meu irmão, assim, os olhos pregados em cada tosse dele, cada puxada de ar, cada parada, cada gemido. Tinha horas em que ele ingressava num discurso desvairado sobre a depreciação da morte, por que as pessoas dão valor apenas à vida, o que ela teria de melhor pra isso, vida e morte são apenas dois pontos de vista sobre o mesmo assunto.

Em suma, um homem essencialmente sensato, o pai.

Da vida dele, na realidade, sei coisas esparsas, histórias que ele contava. Até hoje minha mãe não consegue falar muito sobre ele. Sei que era italiano, de Verona, nunca soube se tinha irmãos ou pais vivos, ele nunca falou da família em casa, até onde lembro. Tinha umas cartas que ele sempre levava ao Correio, eu devia ter uns seis pra sete anos e lembro de ir com ele às vezes, mas nunca me perguntei pra quem seriam.

Ele contava que tinha desembarcado no porto de Santos vindo de Nova York, sozinho, com dezoito ou dezenove anos, apenas com uma valise na mão e um chapéu puído. Não me pergunte o que ele fazia nos Estados Unidos nem por que tinha ido parar lá. Eu sei que chegou aqui como amestrador de pulgas. A tal valise dele. Essa história é legal. Meu pai adorava ir a bares puxar conversa com esses seres solitários da noite, as criaturas abissais, como chamava. Ele dizia que era das experiências mais ricas, não era rica que ele dizia, das mais prolíficas que uma pessoa podia ter. Numa noite, em Nova York, num bar, ele conheceu um amestrador de pulgas. O cara estava meio depressivo, sei lá, acho que tinha acabado de ser despedido de alguma boate, enfim, uísque vai, ele pediu a opinião do meu pai sobre a idéia de vender as pulgas, uísque vem, meu pai comprou o pulguedo inteiro. Sério! Junto, veio um cirquinho em miniatura com trapézio, cama elástica e jaula. Você ri, não é? No dia seguinte, o sujeito deu um workshop rápido e, pimba, meu pai era amestrador de pulgas.

Ele brincava dizendo que havia aportado no Brasil em turnê internacional. Realmente, chegou aqui assim. O detalhe era que ele só viajava clandestino. Meu pai rodou mundo e meio em porão de navio. Bom, aí desembarcou em Santos, pegou o trem, saltou aqui em São Paulo, se instalou na pensão de uma velha no Brás que segundo ele fazia uns ovos estrelados no mesmo formato de uma ferida que tinha na perna, e aí pra começar a fazer sucesso com as pulgas foi um pulo. Só se apresentava pra famílias ricas, isso eu lembro de ele contar em cima do sofá, empolgado. Saía de porta em porta distribuindo panfletos de suas apresentações que ele mesmo desenhava e mandava imprimir. Paulista, Pacaembu, Campos Elísios, Higienópolis. Meu pai freqüentou tanto a aristocracia paulistana que ficou amigo da dona Olívia Guedes Penteado. Ela já devia ser uma senhora, mas se brincar, ele até. Sério, não sei, mas foi através dela que meu pai conheceu Mário de Andrade. Existe uma carta, minha mãe tem ela guardada, na qual Mário se refere a meu pai como o “mocetão trequetreque, que dava espiada nas moças”. Denúncia pesada. Mas meu pai se orgulhava. Nessa carta, Mário de Andrade descreve meu pai como “o espírito que ouve”. Suponho que eles tivessem conversas de alcova modernista, algo assim. “O segredo é a maior virtude de um homem.” Meu pai falava isso muito pra gente.

Bom, então com as pulgas ele começou a juntar um dinheiro razoável, fazendo apresentação pra grã-finagem. Um tempo atrás, achei na internet uma reportagem nos arquivos da Folha que falava do meu pai e suas pulgas amestradas, depois se você quiser a gente entra ali pra ver.

Não sei. Um ano, dois, talvez, não sei. Só sei que um dia ele passou as pulgas adiante, estou resumindo a história até porque não sei muito mais, trocou São Paulo por uma cidade do interior, cujo nome eu gostaria que você preservasse, e resolveu se meter com cinema. Quando ele chegou, ainda não havia cinema por lá, cinema era boa promessa na época e uma paixão dele de menino. Com o dinheiro das pulgas, comprou uma salinha no centro da cidade, reformou, fez chegar daqui de São Paulo algumas poltronas, projetor, tudo de segunda mão, e abriu o novo negócio.

Ele contava que no início acumulava a função de bilheteiro, projecionista e pipoqueiro. Do próprio cinema. Não tinha um único funcionário pra ajudar. Maravilhoso, não? E foi assim até minha mãe, que era freqüentadora e morava na mesma rua do cinema, um dia perguntar se ele precisava de ajuda. E aí ele aceitou. Pouco tempo depois se casaram.

Eu e meu irmão nascemos no cinema, crescemos no cinema, morando no mesmo prédio, no primeiro andar. Meu irmão e minha mãe ainda moram lá, o cinema ainda está lá, igualzinho. Minha mãe hoje cuida do que pode, eu ajudo no que posso à distância e meu irmão. Eu já falo do meu irmão, mas adianto que nossa relação hoje lembra um pouco a mamãe do conto “A saúde dos doentes”, de Cortázar, já leu? É um sentimento parecido, uma sensação de que meu irmão morreu, mas continuo recebendo notícias dele.

Sobre minha mãe, não sei se vai parecer barroquismo o que vou dizer, mas a impressão que tenho é que ela vive num tempo que não é aqui. Minha casa, a casa onde cresci, minha antiga casa, flutua numa espécie de temporalidade ortogonal, presente e passado se cruzam no espaço, mas não se tocam, não sei se dá pra entender. É a sensação que tenho toda vez que vou lá, uma sensação esquisita. Tudo continua como meu pai gostava que as coisas estivessem, os móveis afastados da parede, o telefone cinza de disco, as revistas no cesteiro com uma programação antiga, o toca-discos, o nível do uísque intocado, uma atmosfera de casa comunista misturada a um futurismo retrô, tudo recoberto por uma película de decadência, algo assim.

E meu quarto, também intocado, os livros empilhados sobre a escrivaninha, como se eu fosse sentar ali a qualquer momento pra estudar, e sempre que vou lá, engraçado, é como se a casa atiçasse em mim uma curiosidade mórbida, sempre que durmo lá, é estranho, tem uma coisa que me faz mal, que de certa forma — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — ainda usava uns cadarços ridículos, só eu mesmo pra usar um negócio daqueles, todo mundo adorava fazer troça. Vai ver já naquele tempo eu me sentia digno de ser um personagem ridículo.

Mas aí na metade da aula de ciência, a primeira da tarde, a coordenadora pôs a cara na porta e chamou meu nome. Lembro de ficar surpreso, não sei se por presumir o assunto ou por não suspeitar do que se tratava. Eu me levantei e ela me disse meio ríspida assim: “Recolhe suas coisas, vem comigo!”. Todo mundo olhava pra mim, aquele silêncio, como se eu fosse o único a não saber o que estava acontecendo. Senti na hora como se uma anestesia mal dada, não sei, minhas pernas, a respiração, minhas gengivas, lembro de uma sensação de formigamento nos dentes, de um suor nas mãos que não me deixava prender os livros, na época eu usava um elástico de sutiã velho de minha mãe pra amarrar os livros, e eu não conseguia amarrar a porra dos livros.

Quando saí da sala, vi a coordenadora junto do meu irmão, que chorava. Não tive tempo de perguntar coisa alguma porque logo minha mãe apareceu no alto da escada, amparada pelo diretor, as mãos no rosto, assim, também chorando, uma cena trágica, isso ficou bem marcado, como num filme. Mas ninguém. Mesmo quando a gente já estava na rua, seguindo pro hospital, minha mãe continuou em silêncio.

Lá pelas cinco e meia, seis da tarde, aconteceu que a porra da minha sala inteira apareceu no hospital. Algum espírito caridoso fez o favor de organizar a entrada dos meus coleguinhas de sala, dois a dois, pra espiar a porra do caixão. Entravam dois, olhavam meu pai, me cumprimentavam, saíam. Entravam dois, olhavam meu pai, me cumprimentavam, saíam. Mais dois, entravam, cumprimentavam, saíam. Uma cena interminável. Tenho uma lembrança. Eu não consigo. Eu odiei toda aquela teatralização. Eu olhava em volta e sentia ódio das enfermeiras, todas gordas, ódio dos médicos, uns curiosos no vão da porta, tudo meio felliniano. Eu queria chorar, mas não conseguia. Só depois fui chorar, bem depois, já ritualizado por minha mãe, ela que ritualiza a morte do meu pai até hoje.

No velório, não. No velório ela estava até que contida. Mas no enterro, meu amigo, a mulher tinha um choro tupinambá, convulso, de bater cabeça, na hora de baixar o caixão. Acho que eu também chorava nessa hora, mais por vergonha do que por meu pai, talvez.

Porque a gente já vinha em clima de velório. No espaço de um ano, conseguimos enterrar minha avó, mãe da minha mãe, uma tia, irmã da minha mãe, e meu pai. Mas o baque mesmo foi meu pai.

Só pra você entender, sabe quantas vezes por dia minha mãe levava a gente ao cemitério? Veja bem, eu perguntei por dia, não por semana ou por mês. Três vezes. Por dia! Será que tenho familiaridade com cemitério? A escola e o cemitério ficam perto de casa, então era de manhã depois do café, no início da tarde, antes de ir pra aula e na saída da escola.

Uma imagem clara pra mim dessa época? Deixa eu pensar.

Acho que eu me equilibrando no trilho do trem, a caminho do cemitério. Lembro da minha mãe na frente, no seu passinho marcado típico, eu e meu irmão atrás, apostando quem andava mais tempo sobre os trilhos. Enquanto ela ajeitava as flores no túmulo e chorava, a gente gostava de brincar de vivo ou morto com os filhos do dono da funerária. Às vezes, isso mais no início, aos poucos foi virando parte integrante do programa, ela aproveitava e nos levava pra visitar a família do dono da funerária. Eles moravam dentro do cemitério. A janela da sala dava pros túmulos mais antigos. Palavra!

O cara era dono da principal funerária e administrador do cemitério da cidade. Devia ter um acordo com a prefeitura pra não pagar aluguel, não sei, nunca entendi direito como funcionava aquilo. Minha mãe tinha um flerte subliminar com ele. Subliminar porque ele era casado, ainda é, com a mesma mulher, e aí você entende por que não falo o nome. Se bem que a funerária. Caralho, essa merece, foda-se! Imagine você que o sujeito batizou a funerária com o sobrenome dele: Funerária Nascimento! Dá pra acreditar? Funerária Nascimento! Juro! Está lá até hoje.

Ele e minha mãe nunca prosperaram, o que sempre lamentei. Eu gostava dele, acho que meu irmão também. Ele foi bem importante pra gente. À medida que ia enterrando minha família, ele foi nos acolhendo, a mim e a meu irmão, está gravando? Ele foi nos acolhendo.

Pra gente? Não. Deve ter tido seus namoricos em algum momento, imagino. Mas pra gente não, ela nunca oficializou nenhuma relação. O Heitor, talvez. Mas nunca nada verbalizado. Ela e Heitor são amigos até hoje, ele vai muito lá no cinema, parece que gosta de verdade de filme, não é só pra ver minha mãe, como achei durante anos. Nunca vi os dois se beijando, no máximo de mãos dadas. A cena era meio aflitiva porque ele tem um tremor nas mãos. Aquilo pode ser bom na putaria, mas pra andar de mãos dadas não dá muito certo. A história que minha mãe conta é que ele foi arremessado na parede por um tio alcoólatra quando era bebê e aí ficou com sequela, motora 19 ou psíquica, aí já não sei.

A diferença do Heitor em relação ao dono da funerária, e acho também que o grande empecilho pra ele e minha mãe nunca terem levado nenhum sentimento adiante, era que havia as famílias no meio. Tinha umas pescarias. Outro dia até lembrei dessas pescarias. Foi nessa época que Ulisses começou a botar os olhinhos pra fora d’água, pensei agora na Isadora Ribeiro naquela abertura do Fantástico misturada com Martin Sheen em Apocalipse Now.

Ulisses é o caçula do dono da funerária. Ele é três dias mais novo que eu. Quando meu irmão começou a apresentar os primeiros sintomas, coisa de um ano depois da morte do meu pai, o dono da funerária passou a obrigar os filhos a nos visitar em casa todos os dias. Helena, que é a irmã mais velha de Ulisses, foi umas poucas vezes. Depois de um tempo, só Ulisses continuou freqüentando nossa casa.

Um dia, meu irmão e mais dois pegaram Ulisses na sala de casa. Me puseram de vigia pra minha mãe não chegar de surpresa, e eu fiquei ali, feito um espantalho, sem saber o que vigiar. A regra era cada um por si, Ulisses por todos. Pra todos os efeitos, só tinha macho na sala. Eu lembro que Ulisses pedia pra trocar, aí os meninos diziam assim: “Opa! Viadagem pra cá, não!”.

Minhas primeiras vezes com Ulisses foram no trilho do trem, atrás do cemitério. A sacanagem foi se aprofundando gradativamente, mas aí já dentro do cemitério, setor 2b, dos túmulos mais novos, com vista pra janela do quarto de Helena. Bicho, se Helena soubesse quantas punhetinhas já não bati espiando ela trocar de roupa escondido atrás de alguma lápide.

Mas era estranho aquilo tudo pra mim. Pra Ulisses também, imagino. Mas talvez fosse essa estranheza que atraísse a gente, não sei, era divertido. Sexo e morte nunca coabitaram tão pacificamente. Eros enrabando Tânatos.

Ulisses era um menino atraente. Ele tinha uma delicadeza, lembrava um pouco o Tadzio de Morte em Veneza. A turma jogava tacobol na rua, e ele ia sempre com um shortinho curto, bem da época, bem seventies. Eu tinha uns pensamentos eróticos com aquele short.

Que a gente se conheceu? Não. Foi antes do meu pai morrer. Mas a primeira vez que vislumbrei Ulisses, vislumbrei, quero dizer, a primeira vez que ele me acionou uma chavinha, foi no velório do meu pai. O dono da funerária sempre levava os filhos aos velórios que organizava. Desse dia, eu retive uma cena, quase uma fotografia.

Andre Viana

Nasceu em 1974, no Rio de Janeiro (RJ), mas viveu a infância e a adolescência em Aracaju (SE). Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, trabalhou nas revistas Playboy e Veja, no suplemento cultural do jornal Gazeta Mercantil e na editora Trip. Hoje, além de tradutor, dirige uma pequena editora especializada em histórias de família. O doente é seu primeiro romance e será lançado em março pela Cosac Naify.

Rascunho