Desejo de ficção

Publicado em 1925, “O caso do Império” é extremamente atual e se ajusta ao Brasil contemporâneo
Oliveira Viana, autor de “O caso do Império”
01/02/2014

Oliveira Vianna carrega a mácula de supervalorizar as etnias de origem européia e repetir críticas à mestiçagem semelhantes às que Graça Aranha e Euclides da Cunha fizeram antes dele. Alguns talvez experimentem surpresa pelo fato de Vianna não merecer a indulgência utilizada para julgar os autores de Canaã e Os sertões, mas esse é o comportamento típico de parcela da nossa intelectualidade, pronta a perdoar em alguns o que condena em outros, pautando-se por um grosseiro utilitarismo: o ardor revolucionário com que Aranha defendeu as idéias da Semana de 22 e o suposto ideal socialista de Euclides eximiriam esses escritores de quaisquer culpas. Quanto a Vianna, pouco importa o conjunto de sua obra ou que ele tenha corrigido suas afirmações a respeito da miscigenação — prevalece, em nossa intelligentsia, o lugar-comum de tratá-lo não só como racista, mas também como ideólogo do Estado Novo.

À parte essa questão, como afirmei neste Rascunho em diferentes oportunidades, é curioso que os principais críticos da República permaneçam soterrados: o romance A todo transe!, de Emanuel Guimarães, de inegáveis qualidades literárias, segue escondido no canto mais escuro das bibliotecas; as crônicas sarcásticas de Carlos de Laet, divertidíssimas, sequer foram compiladas na íntegra; e as denúncias de Eduardo Prado, revelando o empreguismo, a demagogia e a corrupção que assolaram o país logo após 1889, reunidas em Fastos da ditadura militar no Brasil, são lidas como insignificantes curiosidades do folclore político. O mesmo estranho tratamento é concedido a Oliveira Vianna, com um agravante: muitas de suas conclusões podem ser encontradas em autores que se dedicaram, nos últimos trinta ou quarenta anos, a estudar o Brasil — mas parte deles sofre de terrível bisonhice, forte o suficiente para impedi-los de citar sua fonte ao menos na bibliografia.

Na contramão dos papagueadores e dos tímidos, destaca-se o trabalho imparcial de Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que não deixa de apontar — no ensaio Francisco José de Oliveira Vianna; sua vida e sua obra, disponível na Web, no portal Proyecto Ensayo Hispánico — as “deficiências teóricas” de Oliveira Vianna, salientando, contudo, que

o pensador fluminense rejeita e supera definitivamente o monocausalismo sociológico que vingou nas diversas teorias de inspiração cientificista acerca da formação social brasileira, ao longo do século XIX e ainda no século XX. Um outro mérito inegável é a rica tipologia sociológica com que soube ilustrar a organização política do Brasil, desde a Colônia até o século XX. […] Justamente o espírito científico do pensador fluminense se revela no rigor metodológico por ele seguido no processo de formulação dos conceitos sociológicos, extraídos […] de uma rigorosa observação dos fatos sociais e do confronto com os dados da experiência. Tendência salutar, hoje mais do que nunca extremamente necessária, em face da perniciosa ideologização das ciências sociais.

Ironia
Essas e outras qualidades encontram-se em O ocaso do Império, de 1925, cujo Prefácio apresenta o objetivo central do livro — “descrever a evolução da mentalidade das nossas elites no momento justo em que passam da grande ilusão monárquica para a grande ilusão republicana” — e a justificativa de ter definido o período entre a queda do gabinete chefiado por Zacarias de Góis (1868) e a publicação do Manifesto Republicano (1870) como ponto de partida do movimento que levaria ao golpe de 1889: no afã de buscar as causas primeiras, o historiador não pode, “de inferência em inferência”, agir como o hipopótamo de Machado de Assis, que “tem a fome do infinito e tende a procurar a origem dos séculos”.

A lembrança de Memórias póstumas de Brás Cubas anuncia uma das características do estilo de Vianna, repleto de comentários e contrastes que revelam a agudeza de sua inteligência.

Há evidente ironia quando se refere ao “romantismo filantrópico dos abolicionistas” e ao “clima de exaltação” que o movimento atingiu. Sem desprezar a humanidade da causa, ressalvando o “estado de degradação” em que caíram os escravos depois da Lei Áurea, Vianna salienta o caráter imaginativo do brasileiro, propício a campanhas emocionais, “extremamente suscetível ao idealismo e ricamente dotado para o entusiasmo”. Os defensores do abolicionismo são “apóstolos”, “cavaleiros andantes”, “evangelizadores” impelidos inclusive por fatores externos, pela pressão de outros países, aos quais o autor se refere como “o resto da Cristandade, lavada, limpa, purificada por inteiro da mácula pecaminosa do escravismo”, afirmação, sem dúvida despropositada, que objetiva ressaltar a verdade: direta ou indiretamente, a Europa sempre se serviu da escravidão.

Oliveira Vianna procede da mesma forma quando se refere aos políticos brasileiros, prontos a considerar uma temeridade a defesa que Pedro II faz, na Fala do Trono de 1867, da “emancipação” dos escravos — homens que, fantasiados de republicanos abolicionistas, oferecem um discurso dúbio poucos anos depois, no manifesto paulista que antecedeu a Convenção de Itu. Depois de citar um longo trecho, em que apresenta o raciocínio tortuoso dos signatários, Vianna comenta:

Os próprios republicanos, pelo menos os republicanos paulistas, tergiversaram — e foram perfeitamente deliciosos nas suas tergiversações. O Manifesto Paulista de 1872 é um mimo, uma jóia de coerência e de coragem de princípios […]. No gênero lusco-fusco, no gênero “quero, não quero”, no gênero encruzilhada, é o que há de mais obra-prima. Eis aqui um documento que devia resplandecer, em moldura de ouro, nas paredes do Museu de Itu.

Descreve os radicais que se aferraram ao utopismo, sonhando com uma república idealizada — política que Joaquim Nabuco qualifica de “silogística” ou “construção no vácuo” —, e declararam Pedro II culpado de todos os males:

Equivale dizer que o que, aos olhos dos republicanos de 70, punha em perigo a Liberdade era a ação de dom Pedro, vigilante, atenta, miúda, exigente. Desde que a livrássemos desta ação, o “perigo” desapareceria, e a Liberdade poderia vir para a rua, limpinha, vestidinha, segurazinha, sem nenhum receio de desacato ao seu pudor e, muito menos, à sua pureza de Diana imaculada. Hoje, porém, com uma perspectiva magnífica pela vastidão e pela riqueza da experiência acumulada, a uma distância de mais de meio século, podemos sentir perfeitamente a ilusão em que andavam aqueles idealistas adoráveis. Os raros, que sobrevivem dessa época, flutuando como épaves no oceano do arrivismo contemporâneo, bem poderiam atestar o seu engano. Muitos deles já o confessaram, num penitet significativo, reconhecendo lealmente que o mal não vinha daquela origem, para a qual “todos apontavam”, mas de outra, muito diversa. Tanto que a causa apontada desapareceu — e o “mal”, isto é, “a anulação do elemento democrático”, continuou cada vez mais florida e vicejante.

O ensaísta também analisa o que chama de “fluxo oratório”, o país hipnotizado pela eloqüência vazia:

Esses neófitos do credo republicano, que mais tarde seriam canonizados e passariam a figurar no Flos Sanctorum do Historicismo, possuíam, na sua generalidade, uma mentalidade de declamadores e, como tais, contentavam-se em atirar, com intuitos ferozmente demolidores, ruidosas bombas de retórica contra o Trono e a Dinastia — e apenas isso.

Que a sanha dos propagandistas tenha predominado sobre os fatos, isso só demonstra que o método ilusionista no qual se mesclam verborréia e demagogia sempre fez sucesso entre nós.

Caudilhismo
A leitura de O ocaso do Império causará, em alguns, certo estranhamento; em outros, mais afeiçoados ao palavrório da classe política nacional, verdadeira repulsa. Entretanto, seja qual for a reação, o fato é que, em inúmeros trechos, temos certeza de que Vianna fala do Brasil contemporâneo.

Ao analisar o parlamentarismo — “um governo de opinião, isto é, um governo cuja instituição num dado povo pressupõe a existência de uma opinião pública organizada” — o diagnóstico de Vianna ajusta-se, passados quase noventa anos, à nossa realidade:

[…] Ora, esta opinião pública organizada, capaz de governo, nunca existiu aqui, nem hoje, nem outrora […]. Havia — como ainda há hoje — uma opinião informe, difusa, inorgânica […]. Esta opinião, aliás, tinha sempre um caráter artificial, era quase sempre um reflexo americano das agitações européias. Só exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das classes cultas do país. […]

Sua definição dos partidos Liberal e Conservador — “eram simples agregados de clãs organizados para a exploração comum das vantagens do Poder” — poderia estar num artigo dos raros analistas políticos sérios que atuam hoje na mídia. E não ficaria mal usar também esta citação: “Em nosso país, com efeito, […] vive-se do Estado, como se vive da Lavoura, do Comércio e da Indústria — e todos acham infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa”.

Se as eleições eram, durante a monarquia, “uma pura ficção constitucional”, uma “burla”, uma “artificialidade do regime representativo”, o problema não mudou com a República:

[…] O presente regime não deu satisfação às nossas aspirações democráticas e liberais: nenhuma delas conseguiu ter realidade dentro da organização política vigente. Estamos todos descrentes dela. […] Tendo perdido a fé no regime vigente, mas não tendo elaborado ainda uma nova fé, estamos atravessando uma dessas “épocas sem fisionomia”, […] parda, informe, indecisa — de atonia, em cuja atmosfera parada, de calmaria, giram, circulam, suspensos, germes de futuras crenças, embriões de futuros ideais, mas que não são nem crenças, nem ideais ainda.

A semelhança que nossos presidentes guardam em relação aos caudilhos do Prata; o desejo do governo, tantas vezes descontrolado, de intervir nas eleições; as “artimanhas dos nossos bosses eleitorais […], inapreensíveis, intangíveis, invencíveis no prodigioso diabolismo das suas habilidades de prestímanos”; a ineficiência “dos aparelhos protetores das liberdades individuais”, que “sempre funcionaram mal, deixando o homem do povo na iminência ou na atualidade dos golpes de vindita dos poderosos” — tudo se corporifica na carta que Floriano Peixoto escreve ao general João Neiva em 1887, defendendo a necessidade da ditadura militar: “Como liberal que sou, não posso querer para meu país o governo da espada; mas não há quem desconheça […] de que é ele o que sabe purificar o sangue do corpo social, que, como o nosso, está corrompido”.

Mas o que se tornaria violência incontida no governo de Floriano, entre 1891 e 1894 — violência, aliás, que nossos historiadores premiaram, dando a esse déspota o título de Consolidador da República —, também se anunciava, de forma sutil e melancólica, no comportamento de Deodoro, pronto a utilizar uma retórica que jamais correspondeu à realidade — “[…] a República virá com sangue, se não formos ao seu encontro sem derramá-lo” — e fraco o suficiente para ser manipulado por Benjamin Constant ou, no cargo de Chefe do Governo Provisório, nomear o ministro da Agricultura sem qualquer referência, a não ser o comentário de Francisco Glicério: “É um grande homem”.

Literatura
O estudo minucioso dos fatos — veja-se, na Terceira Parte, o levantamento dos jornais e clubes republicanos, bem como dos adeptos do positivismo, números que comprovam a desprezível penetração social dessas forças —, o encadeamento de exemplos elucidativos, a análise da psicologia de Pedro II, a exposição do jogo dissimulado da política e a ausência de conclusões ideológicas transformam O ocaso do Império numa agradável peça literária, semelhante ao que Steven Runciman fez em A queda de Constantinopla — e que Javier Marías julgou com precisão: “Sua vontade de não fazer literatura é precisamente o que converteu sua crônica em um romance excelente, que sugere mas não mostra, que faz o leitor fantasiar ao invés de enfastiá-lo com o evidente”.

Oliveira Vianna não idolatra o povo, as instituições, os partidos ou as personagens dessa trama desafortunada, retrato da imaturidade de um país que ainda cambaleia sob o peso de instituições frágeis e políticos oportunistas, acreditando que bastam decretos para se criar uma nação. Com ironia e cultura, sem a linguagem hermética e pedante dos que se apóiam em academicismos, ele nos faz desejar que tudo, incluindo o presente, seja apenas ficção.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Alberto Rangel e Lume e cinza.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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