Miscelânea de máscaras

Marguerite Yourcenar aborda de maneira minuciosa a obra do japonês Yukio Mishima
Marguerite Yourcenar. Foto: Divulgação
01/02/2014

O líquido espesso escarlate alastra-se pelo chão, como um rio cuja nascente, o ventre, “parece vomitar”. A mão que, com a lâmina, lhe abriu a fenda dolorosa pertence ao mesmo corpo. Seppuku. Atrás dele, um jovem com sabre tem a incumbência — Kaishakunin — de dar fim à agonia do suicida, degolando-o. Amante da vítima, ele não consegue, cedendo a outro integrante da seita o encargo.

O Japão é o palco dessa cena, fato que não surpreenderá mesmo um ocidental. Mas ao se aprofundar no contexto — dia 25 de novembro de 1970, no prédio das Forças de Autodefesa Nacional — e em seus personagens, em especial o suicida, o leitor ocidental ou oriental ficará perplexo.

Mais que perplexo, no caso de um oriental. Até hoje no Japão moderno o suicídio lapidado do escritor Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) causa constrangimento e desconforto. É assunto evitado. Em quê ele difere dos que os aviadores japoneses perpetraram na segunda guerra mundial (os famosos kamikazes), sendo o nacionalismo e a determinação pontos em comum?

Talvez o motivo esteja no ritual, anacrônico sem dúvida, mas que remete a esse Japão moderno e “feio”, “de barriga cheia” e “vítima da serpente verde” aquele outro, heróico e honrado, no qual um homem era capaz de tirar a própria vida se sua atitude houvesse desonrado seu senhor. Entre a lâmina e os caças Mitsubishi A6M Zero dista uma dimensão espiritual enorme, e embora o ato seja o mesmo, talvez os contornos desses caças simbolizem ao japonês ocidentalizado a modernização alentadora, integrando a nação milenar ao mundo atual. O seppuku de um “louco exibicionista” de 43 anos torna-se assim uma caricatura folclórica.

Mas não só pelo ato em si, pois como nos mostra em seu ensaio a escritora francesa de origem belga Marguerite Yourcenar, Mishima foi um crítico ferrenho da ocidentalização de seu país pós-1945.

Livros em que um artista de envergadura aborda a obra e as idéias de um outro costumam constituir-se verdadeiras aulas da arte em questão (pensemos em Proust, de Becket, ou Hitchcock/Truffaut entrevistas); o interesse do livro aqui abordado é maior: é a visão de uma artista ocidental acerca da mais fascinante figura autoral do século passado.

No entanto, o contraste não é tão gritante. A despeito de suas posições, Mishima é dos mais ocidentalizados escritores de sua geração. Yourcenar é perspicaz em assinalar na famosa cena de ejaculação de Koo Chan ante o São Sebastião, de Guido Reni, no romance Confissões de uma máscara, uma atração simbólica oriunda do contraste cultural. O elemento erótico parece então entrelaçar-se ao artístico, como o reforça a menção nele (nada gratuita, aliás) ao Sodoma e Gomorra proustiano, e seu universo de invertidos velados.

É também nesse primeiro romance (como no suicídio) que se encontram condensados esses aspectos da obra mishimiana que Yourcenar aborda minuciosamente: o erotismo enredado a uma violência estilizada; o corpo, em seu “saber visceral e muscular”, incorporando o espiritual; a tradição preservada, em especial o bushido (o caminho do guerreiro).

A estrutura do livro e a do homem
Na estrutura convencional do livro as diversas máscaras que revestem o enigma-Mishima (ampliado e desfigurado por conta da “curiosidade grosseira pela anedota biográfica” da época e a mediação da mídia a um público-leitor inepto) dão-se a conhecer: a criança de constituição frágil, “raptada” da estofa pequeno-burguesa dos pais pela avó, neta da estirpe aristocrática (daimyô), que por capricho o vestia eventualmente com trajes feminis, e por nostalgia lhe educava na tradição dramática do No e Kabuki nipônicos, bem como no espírito do bushido; o enfant terrible triunfante já em seu debute, ávido por atenções, e cujo eu expressivo projeta-se na obra (ou o inverso?), egocentrismo certamente, mote para o desdém de um Gore Vidal, mas que, como nos mostra Yourcenar, não é nem preponderante em sua obra (vide o interesse de Mishima pelos fait divers que geram obras como O pavilhão dourado) nem é um problema em si, porque dotado de um universalismo que transcende o exotismo cultural e erótico, fazendo com que os cenários de experiências as mais pessoais bem pudessem “ser Londres, ou Roterdã, ou Nova York, ao invés de Tóquio”; o líder nacionalista e homem de ação, fundador da Tatenokai, organização que cultua a tradição samurai e a lapidação do corpo.

Eis a introdução, a base e o termo do ensaio. A base é o essencial: nela há a análise do cânon mishimiano, onde duas obras sobressaem em extensão e importância.

Patriotismo, conto e média-metragem concebidos por Mishima, ficcionaliza o seppuku do tenente Takeyama e esposa após o malogro do golpe de estado militar (Niniroku-Jiken) de 1936. Expressivamente Mishima interpreta o tenente; eis o dado que, unido às suas famosas seções de fotos artísticas encenando mortes diversas, é para a autora a práxis do preceito do Hagakure, livro-síntese do bushido: “morra em pensamento (…) e não temerás a morte”.

Em Mar da fertilidade, tetralogia cujo último volume Mishima teria enviado a seu editor no dia fatal, a maravilhosa epifania final de Honda frente à imagem de um céu vazio, espelho de sua existência e da idéia de reencarnação do amigo Kiyoaki, morto no primeiro volume, prefigura o mesmo insight final do escritor.

O fim do ensaio dedica-se à descrição do transe final do autor; nela exacerba-se o tom romanesco inerente ao estilo biográfico, e que dota certos fatos e detalhes de um tom simbólico, por vezes excessivo; é o caso do suicídio de Mishima, tido como sua “obra-prima”. A que se considerar, porém, que a idéia de triunfo sempre acompanha a obra-prima, materializada em sua expressividade que altera consciências. Quão tristemente irônico isso soa para o caso em questão, seja no olhar pasmo de seus contemporâneos, seja no olhar retrospectivo cuja reflexão se beneficia melhor pela distância!

Mas sendo o seppuku a redenção de uma falha, qual teria inspirado essa “obra”? A falha de se fazer ouvir à “gente surda e emudecida” da “pátria que está metida/ No gosto da cobiça e da rudeza”? Ou a falha de toda uma obra, cristalizada na preterição ao prêmio Nobel, dado ao mestre Kawabata? Talvez ambos os motivos, talvez nenhum…

Fato é que nos lábios desse narciso oriental, administrador das máscaras que revestem um eu grande demais para não estar fragmentado nelas, soaria estranha a derradeira elegia camoniana, contente de não só morrer na pátria “mas com ela”. Após um século da restauração Meiji e após a queda de Saigo Takamori (cuja luta pela conservação das tradições foi descrita — e romantizada — no filme O último samurai, e que Mishima parece querer replicar), tal elegia soa tardia, como o seppuku, este o ato mais danoso que Mishima cometera contra a própria obra.

Felizmente ela sobrevive pela exuberância e universalismo que o artista lhe imprimiu, e que Yourcenar consegue, de forma cativante e com uma escrita acessível mesmo aos não iniciados neste universo ficcional, traduzir ao leitor.

Mishima ou A visão do vazio
Marguerite Yourcenar
Trad.: Mauro Pinheiro
Estação Liberdade
127 págs.
Marguerite Yourcenar
Nasceu em 1903, em Bruxelas, de pai francês e mãe de origem belga. Foi eleita para a Academia Francesa em 1980. Sua obra compreende, entre outros, o romance histórico Memórias de Adriano (edição original: 1951/última edição brasileira: 2005), que lhe rendeu reputação mundial, além de Contos orientais (1963), Tempo, esse grande escultor (1983) e A obra em negro (1968), que lhe rendeu por unanimidade o Prix Femina naquele ano.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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