Pegue Ligue os pontos — poemas de amor e big bang, segure com as duas mãos e torça. Você vai ver sair dali, torcido, misturado, um pouco de Leminski, Drummond, uma gotinha de Zeca Baleiro, Chico Buarque, Jorge Drexler, Julio Cortázar, funk, muito Rio de Janeiro e um gostinho estranho de supermercado, Bíblia e Egito. Essa foi a receita de Gregório Duvivier em Ligue os pontos.
É um livro de poesia feita sobre becos e avenidas do Rio de Janeiro, sobre cariocas, os lugares que eles freqüentam, seus medos e delícias e uma série muito particular de devaneios que desafiam o espaço-tempo, com a percepção de que na Urca é sempre domingo e a de que alguns becos pertencem a 1993, e não a um mapa.
Na mente de Gregório Duvivier, as pedras que margeiam o Rio são os ossos de uma deusa soterrada, de quem nos é permitido apenas adorar as omoplatas. Seus poemas convidam para um passeio pela orla enquanto relembram pokemons, jujubas, moicanos e faraós com a inocência de uma criança que revela um plano infalível ou um sonho impossível. É como se Duvivier criasse uma nova mitologia do Rio, formada por deuses, pragas, locais sagrados e coloquiais. A tudo isso ele soma incontáveis referências, tanto literárias quanto dessas que ligam uma geração e que não significam muito mais nem menos do que ter vivido determinada época, mas trazem lembranças doces e a sensação instantânea de comunidade para quem o fez.
Com a ausência de pontuação, possibilidades múltilplas de interpretação e um romantismo irônico, Duvivier bate um papo com Leminski. Em poemas que convidam para dar uma volta pelo Rio, traça um paralelo ao amor de Drummond por Itabira e, como ele, registra o tráfego das ruas, o ruído das calçadas. Numa referência ao Chile, e a um martim-pescador obeso, traz à cena Neruda. Com duas palavras, y vos, remete a uma das músicas mais famosas do uruguaio Jorge Drexler, Guitarra y vos, que por sinal tem uma letra que lembra muito a poesia de Duvivier. Em um poema-manual sobre como agir ao se deparar com a coisa mais bonita do mundo, com direito a uma belíssima imagem que remete a um saco plástico para guardar sentimentos que não se deterioram, ele relembra Julio Cortázar e até mesmo Jorge Luis Borges.
São tantos pontos a serem ligados, tantas referências, que podem ser referências, como também podem ser coincidências, tão sutis que são, que é certo dizer que cada um faz uma leitura única do livro de Duvivier. Remexendo em seu baú de memórias, percebendo esse e aquele verso conhecido, cada um forma a imagem que puder (ou que quiser) do jogo de pontos que o poeta nos propõe. Por isso mesmo, é um livro a ser relido. Um jogo a ser revivido.
É certo que é um jogo e, como todo jogo, diverte. Boas risadas esperam o leitor de Ligue os pontos, seja pela lembrança de como podem ser ridículas as expectativas de um adolescente, ou pela complexidade charmosa que pode ter a vida de casado. Assim como juntam as fases históricas e todos os lugares do mundo no mesmo saco, Duvivier usa de suas memórias como se depois dos 14 viessem os 26, e assim por diante. Até a capa do livro, com linhas em relevo, lembra as do jogo de pega-varetas.
É muito interessante também as relações que ele estabelece com músicas, que o leitor acaba lendo e “ouvindo” ao mesmo tempo. Quem resiste a um “ô abre-alas que eu quero passar”? É uma brincadeira que mostra que, mais talvez do que com a pontuação, a gente lê com a memória. Ao mesmo, em poemas como gênesis II, Duvivier afirma que o verbo é inocente, quem erra é o sujeito. Afirmação contraditória para quem dedica seu livro “Para Clarice, é claro”. Clarice Falcão, a esposa de Duvivier. Mas quem disse que em Clarice não cabe também Clarice Lispector, dentro do quebra-cabeça da geração big-bang e do amor.