Aqueles que gostam de fazer listas dos maiores escritores do Brasil, ou mesmo do mundo, não devem nunca se esquecer de um nome: Autran Dourado.
Autran é dos raros romancistas brasileiros que gozam de um consistente reconhecimento internacional — o que não é pouco mérito, considerado o descaso com que a literatura brasileira é recebida lá fora.
Dono de uma sólida formação literária, leitor assíduo dos grandes clássicos, capaz de observar e compreender o processo de composição de cada um deles, Autran Dourado é um escritor de variadíssimos recursos, tanto de estilo quanto de concepção narrativa, terreno em que seguramente está entre os mestres. Além disso, e sobretudo, seus livros contam com algumas das personagens mais densas, mais trágicas da literatura brasileira. Não tenho medo de dizer que ele, nesse aspecto, se compare a Dostoiévski.
Autran Dourado escreveu pelo menos três obras-primas: A barca dos homens (uma história de caça, cuja presa é um ser humano), Ópera dos mortos (romance indefinível, espécie de epopéia mítica sobre a ruína de uma era ou de uma civilização, que tem em Rosalina uma das figuras mais tragicamente eróticas das nossas letras) e Os sinos da agonia, preferência de muitos, inclusive minha.
É comum compararem a história de Malvina, protagonista do romance, ao mito de Fedra, como se Os sinos da agonia fossem a transposição do enredo grego para a Ouro Preto do século 18. Não é verdade. Fedra tenta seduzir o enteado, Hipólito, e — rejeitada — diz ao marido Teseu ter sido ela a vítima do assédio, o que provoca a morte de Hipólito.
No romance de Autran, Malvina emprega artimanhas sórdidas para consumar o amor desvairado que sente por Gaspar, seu enteado, filho de João Diogo Galvão, rico senhor de terras, gado e escravos. O leitor poderá comprovar que, embora Gaspar possa ser associado a Hipólito, Malvina é diferente de Fedra; e João Diogo não tem nada de Teseu.
Além disso, há uma quarta personagem, um outro protagonista, que forma com os três já mencionados um quadrilátero amoroso: o caboclo Januário, filho bastardo de outro rico senhor a quem não podia chamar de pai, com quatro meio-irmãos brancos com quem não podia conviver. Apaixonado e dominado pelo fascínio sexual de Malvina, Januário comete um homicídio às ordens dela. É preso; mas foge da cadeia — e é de um vigor impressionante esta cena, quando ele se confronta com o pai que lhe dá fuga.
Condenado à pena capital, é executado em efígie, ou seja, é morto simbolicamente, perdendo sua condição de pessoa. Esta circunstância, aliás, absurdamente possível no ordenamento jurídico colonial, é um dos achados do livro; e faz de Januário personagem única da nossa literatura. O romance — que se lê como se fosse uma novela de mistério, pela tensão e pela expectativa — é dividido em quatro partes. As três primeiras contam praticamente o mesmo enredo, sob as subseqüentes perspectivas de Januário, Malvina e Gaspar. A última parte define o destino trágico dos protagonistas — que talvez lembre os grandes narradores russos, senão a própria tragédia grega.
Os sinos da agonia saíram inicialmente pela editora Expressão e Cultura, em 1974. Depois disso, houve várias reedições: Difel, Francisco Alves, Record e Rocco, que ainda mantém a obra em catálogo. Para os garimpeiros, a tarefa é fácil. E os exemplares não são caros, custando em torno de R$ 10.