No tempo da ditadura

Tarde incrivelmente quente e intelectualmente gratificante
Fernando Sabino, escritor, jornalista e editor brasileiro
03/02/2014

23.07.1981
Venho do Ibam (Instituto Brasileiro de Administração Municipal), onde Guerreiro Ramos lançou em forma de seminário o seu A nova ciência das organizações, visando a criticar, reescrever Adam Smith (A riqueza das nações, de 1756). Tarde incrivelmente quente e intelectualmente gratificante. Pensava que os 50 administradores, cientistas políticos não entrariam no debate francamente. Mas ao que assisti foi entusiasmante. Lá estavam entre outros: Ignácio Rangel, que se mostrou frontalmente em oposição ao livro de Guerreiro; Saturnino Braga e Márcio Moreira Alves, que não falaram; Milton Santos, o geógrafo — amizade minha recente nas reuniões do CNPq em Brasília; Maria Lucia Lib da FGV e dezenas de outras pessoas como Arthur Rios, Luciano Martins, Walder de Góes, etc.

Guerreiro foi ótimo. Cheio de recursos teatrais e polêmico, atuou melhor do que eu esperava. É curioso seu comportamento intelectual. Sua boa cultura e conhecimento não o impedem de ser tropical, brasileiro, messiânico, enfim, carnavalizador. Sua teoria, contra os positivismos e as leis de causa e efeito do mercado, pode ser, e é, como alguém o disse, “voluntarista”. É um raciocínio mágico, em certo sentido. Deve haver uma afinidade entre nós, como ele testemunhou reincidentemente, até mesmo me telefonando de Santa Catarina por causa da publicação da Implosão da mentira. Aliás, no meio de sua conferência, fez-me um rasgado elogio, chamando-me de “o meu poeta”, “o mais brasileiro dos nossos dias”, etc. O que, de resto, tocou-me muito. E penso e repenso na repercussão ainda desse poema, pois nessa reunião, como ao cabo das últimas semanas, dezenas de pessoas, todos os dias me transmitem a emoção e agradecimento pelo que escrevo (em geral) e por aquele texto (em particular).

Coisas dessa ditadura. Essa repercussão e recepção do meu texto tem algo parecido com outro fato que vem me acorrer. Outro dia Dina Sfat, no programa Canal Livre, fazia parte da equipe que entrevistava o Gal. Dilermando Monteiro. Aquele general liberal que resolveu no governo Geisel o problema da tortura em São Paulo, depois da morte de duas pessoas (Wladmir Herzog e um operário: Manuel Filho). O programa era uma mistura na qual as pessoas tentavam ser agressivas e cordiais ao mesmo tempo. Dina Sfat obteve enorme sucesso, que lhe valeu reportagem de página inteira no JB, sobre sua participação.

Apesar de estarem ali no programa Helio Silva, Audálio Alves, Cicero Sandroni, Fernando Pedreira, ela, na sua “ignorância política”, foi quem saiu-se melhor. Isto porque falou de seu “medo” diante do general, falou com “emoção” e sinceridade.

Penso: de repente, um poeta e uma atriz são os “intérpretes” da voz geral, onde falham os jornalistas, os políticos, os cientistas sociais. Estranha e gratificante situação é esta que faz novamente um deslocamento na cena política, onde os artistas é que produzem o discurso justo e apropriado.

30.01.1983
Vindo de Belo Horizonte com Marina, para onde viajamos com Otto Lara, Fernando Sabino, Helio Pelegrino, Paulo Mendes Campos e esposas, mais Abgar Renault e Alphonsus de Guimaraes Filho.

A Cemig orquestrou o lançamento de um livro-álbum de fotos de BH do princípio da década de 40: Curral del Rey e JK. Grande festa no automóvel Clube. Presentes políticos e a sociedade. O governador que sai, Francelino Pereira, e o que entra, Trancredo Neves. Reencontro com velhos amigos, leitores, desconhecidos.

Jantar na “Casa dos Contos”, reencontro com Roberto Drummond e França Junior, Branca de Paula, Jaime Prado Gouvêa. Encontro de gerações.

Sessão de cinema no “Palácio das Artes” e o filme de longa metragem sobre BH antigo. Almoço no Minas Tênis Clube, com toda a turma mais Maria José de Queiroz, antiga professora de literatura hispano-americana, etc.

O filme sobre Belo Horizonte me impressionou. Como disse a amigos, vendo ali cenas do princípio do século, desfiles, festas, chegada dos príncipes ingleses, revolução de 30 e 32, a ditadura de Getúlio, a “Legião de outubro” do integralista Francisco Campos, e vendo a partir de hoje, o discurso de João Pessoa, os discursos de JK, etc., essas coisas me dão a seguinte sensação: o país que se perdeu a si mesmo. E sinto que isto é coisa desde 1500. Me explico: é como se houvesse uma grande bola ou objeto qualquer sendo empurrado por diversas forças, mas em direções não coincidentes: Exército, Igreja, poder econômico, etc. Haveria um traçado no chão ziguezagueante, cambaleante, confuso? A direção seguida não é a que nenhum grupo queria, nem mesmo os vencedores e donos do poder. Dá uma sensação melancólica de desencontro. Uma cidade com menos de 100 anos — Belo Horizonte — já foi desvirtuada dezenas de vezes, virou uma aberração.

Paulo Mendes Campos, sobre a história de BH, lembra que um arquivista da prefeitura queimou os arquivos, porque só tinha coisa velha e o que interessava era o futuro. O filme que mostram é um terço do material, pois os outros 2/3 estavam inviáveis.

29.03.1982
Paris. Assistimos a Amadeus, de Peter Schaffer com Roman Polanski. A peça é boa. Fantasia em torno da relação Mozart/Salieri. A encenação e os atores muito clássicos, apenas corretos. Este tema da peça — a mediocridade x gênio — é curioso, sobretudo porque Schaefer pinta o medíocre como simpático, invertendo, portanto, os papéis.

A France Culture transmitiu no dia 27 (meu aniversário) a entrevista que dei ainda no Brasil. Falaram também Darcy Ribeiro, Nélida Piñon e Antônio Torres, Moacyr Felix, etc.

Estivemos com Alice Raillard no Deux Margot. Visitamos Charles Dobzynsky da Revue Europe, onde aparecerão textos meus. Visita apenas cordial.

E voltamos a Aix. Aí lemos Veja e IstoÉ com várias matérias, sobretudo sobre o último e deprimente discurso de Figueiredo sobre a licenciosidade da sociedade brasileira.! Tive até insônia até as 4h da manhã. Que regime detestável. E eu, e milhões, atrelados a isto, sem alternativa. Será que tem mesmo que ser assim? Penso e repenso o meu papel nisto tudo. Tenho que arrumar uma solução. Claro que na fúria passam-me pela cabeça até idéias messiânicas, revolucionárias. E penso no papel da poesia. E na impotência nossa hoje diante dos aparelhos de espionagem e do controle político. Só um poema tipo aquele do Rio Centro poderia aliviar minha angústia e a dos outros.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho